USP quer renovar ensino e atrair talentos

Universidade de São Paulo defende ampliar alternativas de ingresso na graduação e quer garantir incentivos à carreira docente

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Por Redação
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Se as principais questões são semelhantes às de outras instituições de ponta mundo afora, o tamanho da Universidade de São Paulo (USP), com quase 100 mil alunos, e as especificidades do ensino superior no Brasil representam desafios adicionais para os próximos dez anos. Em entrevista ao Estado, o reitor da USP, Marco Antonio Zago, e o ex-reitor José Goldemberg, hoje à frente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), apontam esses desafios e indicam possíveis soluções. Ambos defendem contato mais próximo com a iniciativa privada e diversificação das fontes de verba além dos recursos públicos, principalmente com a crise econômica do País. Para eles, também é preciso modernizar as práticas de salas de aula, com mais foco no método do que no conteúdo, e investir na atração de talentos – múltiplas portas de entrada e mais incentivos para quem se interessa por graduação, pesquisa ou docência.

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Quais são os principais desafios da USP nos próximos dez anos? 

ZAGO. São desafios similares aos de outras universidades do mundo. Passam pela questão de financiamento. No caso da USP, a busca de outras fontes de recursos além daqueles que vêm estritamente do governo do Estado. Em segundo lugar, a seleção de estudantes para a universidade. É claro que o panorama do Brasil é muito diverso em relação aos outros países, em que praticamente não há restrição à entrada na universidade. E aqui temos uma enorme competição: no caso da USP, de dez candidatos para uma vaga. Temos a questão da seleção dos professores e a progressão na carreira docente, a valorização das diferentes atividades da universidade. Na USP, é certo que muitos dos cursos são de elevada qualidade, são os melhores do Brasil em determinadas áreas, mas isso não se aplica genericamente a todos. Precisamos de melhora. O financiamento é também importante porque implica na questão da universidade com a sociedade que a mantém e não só a relação com os governos. E, finalmente, temos a questão da governança, como as universidades escolhem os seus dirigentes, como os docentes ascendem na carreira, como a universidade escolhe reitor, os diretores, enfim. 

GOLDEMBERG. A USP atingiu a maturidade após seus 80 anos de existência. Ela tem quase 100 mil alunos, mais de 5 mil professores e os quadros são mais ou menos estáveis, com a crise econômica do País e a diminuição dos seus recursos. E com o fato de a universidade não poder crescer infinitamente, ela enfrenta problemas de renovação e manutenção da qualidade. Como não ficar estagnado? É necessário aproveitar o fato de que muitos professores estejam se aposentando para escolher professores jovens, mais agressivos e mais dotados. Isso é um pouco difícil de fazer em universidades públicas, como a USP, em que as pessoas fazem concurso e são estáveis. Não é como nas universidades estrangeiras, em que há uma espécie de competição permanente. A razão pela qual a universidade funcionou bem nos primeiros anos foi porque atraiu jovens talentosos que estavam espalhados pelo País todo. Para a sociedade brasileira, no momento em que está agora, a inovação é muito importante. Depois de 80 anos de um sucesso razoável, as pessoas tendem a ficar confortáveis. É preciso ter novos desafios.

USP precisa atrair e manter talentos, defendem Zago e Goldemberg Foto: NILTON FUKUDA/ESTADAO

USP precisa atrair e manter talentos, defendem Zago e Goldemberg (foto) 

O governo japonês estabeleceu três classificações de universidade: as globais, as nacionais e as de revitalização social, priorizando algumas universidades de excelência para ter competitividade internacionalmente, inclusive com aportes extra de recursos. É uma experiência que já foi feita na Califórnia, nos Estados Unidos, e em outros lugares do mundo. O senhor acha que no Brasil deveríamos ter uma priorização de algumas universidades para termos competitividade internacional? 

ZAGO. Não se trata apenas de competitividade internacional. Trata-se de usar melhor os recursos para atender uma parcela maior da população, fazendo cada instituição assumir a vocação que tem. Há a experiência japonesa, a da Califórnia. Mas outros países estão adotando isso de maneira ativa, como a Alemanha e a Rússia, que elegeram instituições para competição internacional. Agora, isto não diz respeito à USP. É minha visão mais ampla sobre o ensino universitário. Temos quase 70 universidades federais e, certamente, qualquer um seria capaz de dizer que elas não são exatamente iguais e não deveriam ter a mesma visão. Essa questão prática caberia, inicialmente, ao governo federal. Porque, no caso do Estado de São Paulo, as três universidades públicas estaduais (USP, Unicamp e Unesp) cabem nessa categoria de universidades globais. 

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A universidade tem condições de crescer e, ao mesmo tempo, atender essa demanda de acesso sem comprometer a qualidade das suas atividades acadêmicas? 

GOLDEMBERG. Não creio. A USP atingiu um tamanho em que vai ser impossível aumentar o número de estudantes e de professores. Já é uma das maiores universidades do mundo, com cerca de 100 mil alunos. A competição é muito grande, evidentemente, e é uma das razões pelas quais a universidade é boa. A universidade atingiu o seu limite e a situação econômica que está enfrentando hoje mostra que ela recebe das verbas do Estado aproximadamente 5% do ICMS, mas isso já está se mostrando insuficiente para atender às necessidades todas de uma universidade de ensino e pesquisa. Se ela fosse só de ensino, bastaria. O caminho é criar outras instituições. Não existe razão para que todas as universidades brasileiras sejam de ensino, pesquisa e prestação de serviço à comunidade. É impossível. Isso precisaria mudar. O Estado da Califórnia, que você citou, tem uma quantidade muito grande: são os community colleges, que não são universidades de quatro anos, mas de dois anos. A expansão do ensino superior no Brasil – talvez não no País, mas no Estado de São Paulo – passa pela adoção do modelo de community colleges.

Como a USP pode melhorar a relação com o setor privado em busca de verbas e parcerias? 

ZAGO. De várias formas. Em primeiro lugar, a questão central é a própria universidade se convencer de que essa é uma via não só possível, como necessária. Não só porque está ficando claro que o padrão de financiamento da universidade baseado apenas em recursos vindos do Tesouro do Estado tem muitas limitações. Neste momento, por exemplo, temos uma crise econômica grande no País, com redução na arrecadação de ICMS. A universidade não pode ficar dependendo estritamente dessas variações. Em segundo lugar, porque é benéfico para a universidade manter uma relação mais clara com a sociedade. Essa relação implica não só uma mudança nos padrões de financiamento, mas também uma oportunidade para que a sociedade possa contribuir para o planejamento, a gestão e a vida da universidade. 

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GOLDEMBERG. As fundações que existem na universidade, como a Fusp e várias outras, fazem um pouco essa ponte. A queixa no passado era de que o professor universitário não queria saber da realidade. Queria fazer trabalhos acadêmicos e a indústria não tinha como atingir a universidade. Já há esses mecanismos (de aproximação entre a academia e os meios produtivos). É preciso aumentá-los, atraindo o setor privado. As universidades públicas americanas e algumas privadas sem fins lucrativos já enfrentaram esse problema com sucesso no passado.

ZAGO. Essa é a linha que estamos procurando seguir. Isso exige duas coisas. Primeiro, existem essas fundações, um dos braços que podem ser usados para isso. Mas ainda falta a universidade tomar uma clara posição formal com relação a essas fundações. Vive-se uma certa zona cinzenta, em que um grupo de pessoas na universidade valoriza essas fundações, se utiliza delas. Elas têm um papel importante, complementar na universidade. Mas há grupos que negam sua importância e entendem que isso é uma forma de parasitismo. Teremos de caminhar na regulamentação clara na função dessas fundações na universidade e o Conselho Universitário (órgão máximo da USP) terá de se manifestar. Da última vez em que houve tentativa de fazer isso, o Conselho Universitário foi impedido de discutir o assunto. Mas ele retornará porque isso é fundamental para que se possa progredir. Se queremos que isso tome uma proporção maior e traga contribuição significativa do ponto de vista financeiro para a vida da universidade, é necessário que tudo isso esteja muito transparente, regulamentado, e que as contas possam sempre ser examinadas por todos. Não estaremos inventando nada, mas simplesmente dando maior clareza para o funcionamento do que já existe. (A reitoria) pretende propor (um regramento para as fundações). Espero que seja neste ano. Não é viável imaginar que nos próximos decênios a universidade ficará presa exclusivamente ao modelo de financiamento estabelecido há mais de 20 anos. Foi muito bom, deu enorme liberdade para as três universidades públicas paulistas, mas a experiência está demonstrando que precisamos de outros mecanismos. 

GOLDEMBERG. Nas universidades do exterior, a escolha de novos professores depende dos diretores das unidades, dos decanos. Há muita liberdade e concorrência. Quando aparece um sujeito talentoso do Alabama, duas ou três universidades de primeira linha, como Harvard, tentam atrair essa pessoa oferecendo vantagens. No Brasil, isso não é possível, porque no funcionalismo público os salários são todos iguais. Isso sempre foi considerado um obstáculo grande. Mas o que reparo, com otimismo, é que cada vez que tem um concurso em São Carlos, ou na Medicina, quando um professor se aposenta, aparecem vários candidatos. É um sinal de vitalidade. Em um passado mais distante, algumas dessas cátedras eram quase hereditárias. Isso acabou. Agora existe competição. Tem muita competição para os doutores também, no começo da carreira. O melhor, evidentemente, seria dispor dos mecanismos que os reitores de outras universidades estrangeiras têm para atrair os mais competentes e mais promissores. Os órgãos do governo estão começando a introduzir alguns mecanismos, como no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, agência de fomento federal) com bolsas de excelência, e na Fapesp. No fundo, são gratificações pelo mérito. Mas são muito pequenas ainda. A ideia de que todos os doutores da USP ganhem o mesmo tanto, no fundo, desencoraja a criatividade. Deveria haver maneiras de prestigiar os mais empreendedores, inclusive os mais ambiciosos. Ambição faz parte da vida, inclusive de sucesso na ciência.

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ZAGO. Existe uma questão que precisa ser adicionada. Por ser a universidade mais destacada do País, atrai automaticamente os jovens mais talentosos. E sempre ofereceu vantagens, em termos de vencimento, pelo menos equivalentes às de outras universidades. Agora temos uma situação séria, que pode significar a perda de competitividade das universidades públicas paulistas. A questão do teto salarial. Estamos limitados por um dispositivo constitucional, em que o teto dos professores da USP corresponde ao subsídio do governador. Sem entrar no mérito da questão, devemos lembrar que, no Estado de São Paulo, há três universidades federais que têm outro teto. Se essa situação persistir, não tenho dúvida de que um jovem talentoso vai preferir um concurso em uma federal do que na USP. Isso será, em longo prazo, destrutivo para a nossa universidade.

Como a universidade – a USP mais especificamente – pode preparar os jovens para um cenário de incertezas e para carreiras que estão se transformando ou para que nem existem ainda e vão existir em alguns anos? 

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ZAGO. Essa é uma missão difícil, mas possível de ser realizada. Ela exige que a universidade se modernize na abordagem aos currículos, aos cursos e às estruturas dos cursos. Esse é um dos pontos em que eu e a Pró-reitoria de Graduação da USP temos trabalhado. Começamos reduzindo a rigidez burocrática da universidade, que fazia qualquer mudança nos cursos levar dois ou três anos para entrar em vigor. Isso foi resolvido. Temos hoje as unidades tratando das suas estruturas curriculares e colocando em prática imediatamente aquilo que decidem. É preciso insistir muito mais nos métodos do que no conteúdo. Nas universidades latino-americanas, nós temos, em geral, muita preocupação com conteúdo, com abranger o conteúdo completo sempre, de qualquer assunto que se fale, e com o currículo ser abrangente. Enquanto isso, as universidades mais bem-sucedidas tratam muito mais do método do que do conteúdo. Porque, na verdade, estamos falando de ensinar e treinar o estudante a tirar suas conclusões e resolver seus próprios problemas. Muito mais do que fazer com que ele se torne um indivíduo versado em um catálogo de conhecimentos já estabelecidos. Essa mudança de perspectiva, portanto, exige a redução das cargas horárias para disciplinas tradicionais e um aumento das atividades que envolvam o estudante para resolver problemas. É só dessa forma que podemos treinar o aluno para algo que não sabemos o formato que terá. Tem de treinar em habilidades mais básicas: capacidade de comunicação, capacidade de trabalhar em grupo e resolver problemas. Trabalhar em grupo não é fácil. É algo que muitas pessoas acabam sendo incapazes de se adaptar depois. Não se trata somente de treinar para ser líder. Mas treinar para aceitar a liderança de um outro, para que o grupo seja positivo.

GOLDEMBERG. Isso está sendo feito em grande escala na universidade. É reforçar os cursos básicos. E não tentar dar uma formação bitolada. Se quer formar engenheiros, não pode usar uma grande parte do seu tempo de aula e de laboratório ensinando como se faz usinas hidrelétricas. Tem de ensinar os princípios fundamentais, porque daqui a 20 anos as usinas não serão construídas como eram no passado. 

ZAGO. Nesse aspecto, há outra questão que muitas vezes as pessoas não se dão conta. O que justifica que uma universidade de pesquisa é sempre a capacidade dar formação de melhor qualidade. Não é, como muitas vezes as pessoas pensam, que o professor faz seus experimentos, escreve seus artigos e vai mostrar este resultado na sala de aula. É porque o ambiente de pesquisa cria, para os estudantes também, este ambiente de especulação, de examinar resultados, de relação causa e efeito. Na USP, muitos estudantes fazem iniciação científica, que pode ocorrer em qualquer área do conhecimento. E em que se resume a iniciação científica? Um professor propõe um problema para um estudante, que tenta resolvê-lo sob supervisão. Isto é: ele vai olhar os antecedentes, o que já existe, o que foi publicado, qual é a situação. Ele vai montar um experimento ou fazer uma arquitetura especulativa, para pensar a respeito daquilo. O aluno vai obter seu próprio resultado e suas conclusões, e depois vai relatar isso. O aluno que passou por essa experiência é um aluno completo. Se o estudante passou pela universidade e aprendeu o método científico, ele está preparado para a vida. A história de ele saber qual é o último protocolo para tratar enfarte do miocárdio é simplesmente um apêndice. Não é isso que vai diferenciar o estudante universitário bem formado, que vai trazer grandes benefícios para a sociedade, daquele outro que tem uma formação superficial, que aprendeu um conjunto de regras, que dentro de dez anos estão completamente desatualizadas. 

Neste debate sobre acesso e excelência, qual é o futuro da USP no universo da inclusão e das ações afirmativas – cotas, bônus, métodos de entrada? 

ZAGO. Uma coisa é fácil de responder: diversificar os métodos de entrada é uma boa solução. O que nós buscamos são alunos de excelência, aqueles que podem render mais para a sociedade. É fácil de entender que selecionar estudantes que estão no fim do ensino secundário, buscando aqueles que têm melhores condições, não é um processo simples. Os talentos podem ser buscados de formas diversas. Por isso, digo: diversificar os métodos de entrada. O vestibular que a USP usa, a Fuvest, é um sistema bom. É muito exigente, seleciona os alunos que estão bem treinados para aquele sistema. E nós sabemos a origem dos alunos que estão bem treinados para aquele sistema: aqueles das camadas mais favorecidas da sociedade têm mais chances de estarem ali. É um sistema que tem mais chances de retroalimentar essas diferenças sociais. Na medida do possível, temos de intervir. Não é para desfavorecer os que vêm de famílias mais abastadas, mas para que não percamos talentos outros que existem na sociedade. Ao lado do sistema vestibular que temos, há que buscar outras saídas. A USP já tem duas: uma é o sistema de bônus e a outra é o Sisu (Sistema de Seleção Unificada, plataforma digital em que os alunos disputam vagas públicas com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem). Ambas estão contribuindo para favorecer a entrada de grupos antes desfavorecidos na universidade. Se isso é suficiente ou não, é o tempo que dirá. Neste ano, pretendo conduzir uma discussão a respeito disso na universidade. Vamos examinar os resultados que já obtivemos. Podemos aumentar a inclusão sem comprometer a qualidade. 

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A ideia é retomar o debate sobre as cotas na universidade?

ZAGO. O reitor não tem opinião fechada com qualquer dos métodos que sejam adotados. A minha preferência é de que usemos mais de uma alternativa (de ingresso na universidade) para ampliar a inclusão social.