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Universitários haitianos falam de suas dificuldades no Brasil

Estudantes da Unicamp reconhecem importância do intercâmbio, mas reclamam de preconceito

Por Carmo Gallo Netto e da revista Unicamp de Portas Abertas
Atualização:

Era fim de tarde em 12 de janeiro de 2010, uma terça-feira, quando Jean Deumettre e Wesner Saint Just deixaram o prédio da École Normale Supérieure (ENS), faculdade em que cursavam Letras, na Université d’Etat d’Haiti, em Porto Príncipe, capital do Haiti. O primeiro fora solicitado pouco antes a passar na casa de uma tia; o segundo atendera o chamado de um colega que estava de saída. Logo depois, às 16h50, um violento terremoto de 7 pontos na escala Richter devastou 70% das construções da cidade. Na universidade, quase totalmente destruída, morreram professores e alunos.

 

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A tragédia afetou mais de três milhões de pessoas e provocou 250 mil mortes, em um país com cerca de dez milhões de habitantes, dos quais dois milhões vivem na capital. Wesner conta que as imagens dos mortos espalhados pelas ruas o impressionaram de tal forma que não conseguiu comer por uma semana. Enquanto esperam a reconstrução e a retomada das atividades em sua universidade, esses dois jovens frequentam o curso de Letras do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

 

Depois do terremoto, quase todas as atividades foram interrompidas no Haiti. Nações como EUA, França, Inglaterra, Argentina e Brasil, entre outras, se propuseram a ajudar o país na formação de quadros que pudessem vir a contribuir para a sua reconstrução. O Brasil ofereceu a 500 jovens haitianos a oportunidade de continuar aqui os estudos universitários, através do programa Pró-Haiti, financiado pela Capes, embora fossem atendidos por enquanto apenas 81, sendo 41 pela Unicamp. O programa prevê uma estada de 18 meses, os seis primeiros para o aprendizado da língua e mais 12 destinados às disciplinas dos cursos de graduação em que os estudantes se inserem.

 

Ao chegarem a Campinas, Jean e Wesner se sentiram bem acolhidos pela comunidade acadêmica e não tiveram dificuldades em arranjar acomodações. O problema surgiu quando, por falta de emprego, tiveram de procurar outra moradia. A impossibilidade de conseguir fiadores os obrigou a pagar aluguel mais alto por aposentos que tiveram que mobiliar. O custo de vida em Campinas e uma bolsa, que se revelava insuficiente, os levaram a um quarto de uso comum. O problema financeiro é atenuado pela bolsa-alimentação da Unicamp, que inclui almoço e jantar de segunda a sexta-feira no Restaurante Universitário. Confessam que nos primeiros meses tiveram dificuldades com a comida, que no Brasil recebe preparo diferente do que estavam habituados.

 

O difícil começo

 

Os estudantes chegaram a Campinas em agosto de 2011 para o curso de português, no Centro de Estudo de Línguas (CEL) da Unicamp, que os credenciaria a acompanhar as aulas das disciplinas de graduação a serem cursadas a partir de março do ano seguinte. Consideraram os poucos mais de três meses de aulas que frequentaram insuficientes para aprender a falar e escrever em um idioma que desconheciam totalmente, já que no Haiti a língua corrente é o crioulo haitiano e a oficial, o francês, utilizado na escola.  Mesmo assim, no ano seguinte, tiveram que escolher sozinhos, consultando o catálogo dos cursos de graduação, as disciplinas que desejavam cursar. Optaram então por aquelas que lhes pareceram mais indicadas para a formação que desejavam: “Introdução à literatura e cultura brasileira”, “Formação do professor de língua”, “Letramentos”, “Textos em teoria crítica e história literária”, “Pesquisa e Historiografia literária”.

 

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Afirmam que conseguem acompanhar as aulas, desde que o professor fale pausadamente, embora não participem como gostariam das discussões desenvolvidas em sala de aula por não conseguirem argumentar em português.

 

Impressões

 

Os dois estudantes elogiam o programa de que participam, embora manifestem preocupações. Deixam claro que consideram muito positiva a formação que estão adquirindo na Unicamp. Afirmam ter consciência de que estão em uma grande universidade de que gostam muito e não têm nenhuma dúvida sobre a importância para suas formações das disciplinas que cursam. Entretanto, chegaram com a expectativa de que poderiam concluir aqui seus cursos de graduação, mas hoje se revelam apreensivos em relação à possibilidade de sair do Brasil com um certificado que lhes garanta a inserção profissional em seu país. Não sentem segurança de que isso venha a ocorrer, que o programa possa ser estendido por maior tempo, porque consideram 18 meses, com seis deles destinados ao aprendizado da língua, insuficientes para a conclusão dos seus cursos. Gostariam de completá-los na Unicamp.

 

Estrangeiros, Jean e Wesner se mostraram compreensivelmente reticentes no início da entrevista. Temiam terem as palavras deturpadas e que suas vozes fossem entendidas como representativas dos 41 haitianos que participam do mesmo programa na Unicamp.

 

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Deixaram muito claro que falavam por si. À medida que a conversa fluía se mostraram cada vez mais distendidos. A ponto de fazerem referências a questões que os incomodavam, como a discriminação e o desconforto pela imagem do Haiti, primeira colônia da América Latina a libertar os escravos e com população predominantemente negra. Jean afirma: “Eu gosto do Brasil. No pouco tempo que estou aqui, já consegui me situar em relação a muitas coisas. Tenho um problema com o clima, que varia muito do calor para o frio. O clima do Haiti é tropical, mas não muda como aqui, de um dia para o outro, é mais estável. Eu gosto da forma como as universidades brasileiras funcionam e a liberdade de escolha é maior do que no Haiti. Uma questão que me incomoda é a imagem que os brasileiros têm do Haiti. A maioria vê o nosso país como um lugar miserável. O Haiti tem grandes problemas a resolver, mas não pode deixar de serem considerados também os aspectos positivos. Mas por alguma razão eles não são mencionados”.

 

Dando eco às declarações do brasileiro Ricardo Seitenfus, que chefiou em 2009 a Missão de Estabilização das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), que lá estão desde 2004, ele diz que o seu país não necessita dessas tropas de paz, mas de pessoas que ajudem o seu desenvolvimento na agricultura, na construção civil, nas tecnologias.

 

Wesner, por sua vez, enfatiza que veio ao Brasil para estudar: “Eu quero voltar para trabalhar na reconstrução do meu país, onde estão meu pai, minha mãe, meus irmãos, minha família, minhas raízes. Também gosto daqui, onde encontramos pessoas muito simpáticas, embora também exista o preconceito. Eu o percebo em relação ao negro. Nessas situações me sinto muito mal. Para mim a diferença está apenas na cor, porque como você eu também tenho cabeça. Tem gente que pensa que o Haiti é um país da África e desconhece que está na América Central, vizinho dos EUA. Foi colonizado pelos franceses com escravos trazidos da África, e isso o fez uma nação essencialmente negra, porque o povo indígena primitivo foi totalmente exterminado pelos espanhóis. Gostei de ter vindo para o Brasil, uma grande nação, que pode, como outras, ajudar na reconstrução do meu país. Eu vim para continuar os estudos, mas quero retornar para ajudar a refazer a educação, porque sem ela não há desenvolvimento. Acho que o tempo que passarei aqui e o aprendizado que estou adquirindo vão me ajudar nesse trabalho”.

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Ambos entendem que o programa de que participam contribui para que os próprios haitianos adquiram condições de desenvolver a nação, com autossuficiência e principalmente independência.

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