Uma visão mais sofisticada das cotas

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Por Agencia Estado
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Imaginem uma prova de atletismo. Cem metros rasos, por exemplo. Vários atletas correm o mais rápido possível em uma pista reta. O vencedor é aquele que cruza em primeiro lugar a linha dos 100 metros. O resultado dessa prova é muito simples e muito bonito: o corredor com mais explosão, o mais preparado, enfim, o que corre mais rápido, esse ganha. Muito justo, não? Agora imaginem que, em vez de os atletas saírem todos do início da pista, eles são distribuídos aleatoriamente ao longo dela. Alguns corredores largam do ponto de partida, outros tantos saem vários metros na frente, e assim por diante. E agora? Quem é o mais provável vencedor da corrida? O resultado dessa prova imaginária também é muito simples, mas não tão bonito: o corredor que largou de uma posição mais próxima da linha de chegada terá uma grande chance de se sagrar campeão. Ao mesmo tempo, a chance de vitória do pobre coitado que largou do início da pista é minúscula. Ou colocando de outra forma, se todos os atletas tiverem o mesmo preparo, a mesma explosão e, no limite, correrem na mesma velocidade, o que largou detrás nunca será o vencedor. Um atleta que larga detrás só vencerá tal prova se ele for realmente muito, mas muito melhor que os demais. O atual sistema de ingresso nas universidades públicas via vestibular é mais ou menos como nossa corrida imaginária. Um sistema como o vestibular é incapaz de medir precisamente o mérito dos alunos, simplesmente porque os alunos largam de posições distribuídas aleatoriamente ao longo da ?pista?. Pode ser que o aluno que freqüentou as melhores escolas e cursos pré-vestibular, que teve uma série de circunstâncias favoráveis (família organizada, boa alimentação, plano de saúde etc), que se deu relativamente melhor que os outros no vestibular e assim foi aceito nas universidades públicas seja absolutamente melhor que os demais. Quer dizer, pode ser que esse cara continuasse a ser aprovado numa competição na qual todos os outros concorrentes tivessem as mesmas condições que ele teve. Mas também pode ser que não. O fato é que o vestibular é incapaz de medir isso. Mesmo assumindo-se simplesmente que as universidades querem recrutar os melhores alunos para seus cursos (e evitando assim uma discussão polêmica e apaixonada sobre o papel das universidades públicas no Brasil), pode-se defender sistemas meritocráticos alternativos ao vestibular. A idéia é se discutir a formulação de um sistema de acesso ao ensino superior público que mensure o mérito absoluto dos candidatos e não o relativo. Um modelo ideal seria aquele em que se consegue separar o desempenho do candidato daquelas circunstâncias fora do seu controle, mas que afetam a sua performance. Para exemplificar esse ponto voltemos ao atletismo. Nas provas de 400 metros rasos os competidores têm de correr, cada um em sua raia, o mais rápido possível até cruzar a linha de chegada. Mas como a pista é oval, as raias internas são mais curtas que as externas. Então, se todos começarem do mesmo ponto de partida, uns atletas terão de percorrer distâncias maiores que os outros durante a corrida. Para que a competição seja justa, os competidores largam de diferentes pontos da pista, de forma que a distância percorrida seja a mesma para todos. É um modelo como esse que se propõe. Como as ?raias? de alguns estudantes são mais longas ou mais duras que a de outras, parece justo que isso seja levado em conta na avaliação do seu desempenho. Nesse sentido, a implementação de um sistema de cotas pode ser interpretada como um caso particular de um modelo mais amplo de avaliação de mérito dos alunos. Se acreditarmos que alunos oriundos de determinados segmentos da sociedade tiveram uma série de circunstâncias alheias ao seu controle, mas determinantes na sua performance numa prova de vestibular, devemos então levar isso em consideração na hora de aprovar ou não o aluno. Evidentemente, é difícil implementar um modelo como esses. É difícil identificar precisamente esse conjunto de circunstâncias. É difícil mensurar o quanto tais circunstâncias afetam a performance dos alunos. Será sempre arbitrária a forma de se ponderar tais informações com resultados de avaliações objetivas como uma prova de vestibular. É isso mesmo, é tudo verdade. Mas essas são questões que podem e devem ser discutidas e resolvidas por uma sociedade democrática. O importante é que se entenda que é possível se implementar algum sistema de cotas que garanta o acesso dos melhores alunos nas universidades públicas, dos que tiveram mais mérito, e não daqueles que simplesmente ?largaram? na frente. As cotas não são uma concessão da sociedade, mas uma apreciação mais sofisticada do mérito. * Mestre em Economia pela Fundação Getúlio Vargas e doutorando em Economia na Universidade de Chicago

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