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Renda familiar e acesso à universidade

Por Agencia Estado
Atualização:

Sebastião de Amorim * Não há como negar: no Brasil, a distribuição de vagas de qualidade no ensino superior é muito pior que a da renda. No fundamento "distribuição de renda", o Brasil se coloca bem próximo do último lugar no rol das nações do mundo, disputando a posição com Serra Leoa, e muito atrás de seus vizinhos sul-americanos mais pobres, como Bolívia e Paraguai. Não se alcança tal distinção impunemente, e a paisagem urbana nas nossas grandes cidades é testemunha dramática desta grave distorção. E não apenas a paisagem urbana. De fato, qualquer organismo inserido nesta sociedade, e não dispondo de mecanismos eficazes de compensação corretiva, gradualmente se ajustará ao meio, refletindo distrofias decorrentes das condições envoltórias. Nesse sentido, nossas instituições de ensino superior não são exceção. Tomemos o caso da Unicamp, bem representativo das instituições de ensino superior de qualidade no País. Embora recrute seus novos alunos por meio de rigorosos critérios acadêmicos, ela acabou sofrendo um processo de seleção econômica, induzido pelo meio social no qual está imersa. Compare-se o perfil social dos seus alunos com o da população e se verá um quadro de concentração de vagas ainda mais agudo que o da renda. Consideremos dois estratos extremos de renda familiar mensal: o inferior, de 0 a 5 salários mínimos, e o superior, de 30 salários mínimos ou mais. O inferior - com 77% da população brasileira - ficou com apenas 5,5% das vagas do Vestibular-99 da Unicamp. Uma sub-representação de 14 vezes. Já o estrato superior, com 2% da população, ocupou 35,5% das vagas. A sobre-representação chegou aí a quase 18. A combinação destes dois fatores opostos deu ao estrato mais rico uma taxa de acesso 250 vezes superior à do mais pobre. Este índice de seletividade econômica (ISE) ganha contornos ainda mais dramáticos quando se restringe às carreiras mais concorridas. Naquelas com pelo menos 20 candidatos por vaga, ele foi de 387; na Medicina, com 90 candidatos por vaga, chegou a 591, ou absurdos 59.000%. Por outro lado, o estrato inferior se apropria de 35% da renda nacional, contra 18% do superior; um ISE de 20. Não há como negar: no Brasil, a distribuição de vagas de qualidade no ensino superior é muito pior que a da renda. Sem ser um agente de desconstrução progressiva dos excessos da concentração de renda no País, o ensino superior antes os nutre e reforça. Esta situação não combina bem com o ideal republicano de uma sociedade moderna, democrática e competitiva, na qual o cidadão tem, nos órgãos públicos, oportunidades consistentes com seu talento e dedicação, independentes da condição de berço. Mas voltemos aos dados. O perfil de renda do 1,8 milhão de estudantes que fizerem o Enem-2003 revela um grau surpreendente de democracia quantitativa na trajetória que vai da pré-escola ao fim do ensino médio: com 70% provenientes do estrato inferior e 2,9% do superior, o ISE/Enem ficou num quase inocente 1,6. O vestibular seria, então, o estágio crítico da filtragem econômica? Errado! A comparação dos perfis do candidato inscrito e do aprovado revela que a taxa de aprovação entre os candidatos ricos é apenas marginalmente superior à dos mais pobres: estes são 6,5% dos inscritos e 5,5% dos aprovados. O estrato mais rico responde por 32,8% dos inscritos e 35,5% dos aprovados. O ISE/Vestibular fica, então, em 1,3. Foco agora no passo anterior, da conclusão do segundo grau à inscrição no vestibular. O estrato mais pobre se afunila de 70% no Enem a apenas 6,7% dos inscritos. Já o mais rico vai de 2,9% no Enem a 32,8% dos inscritos. Pronto! Eis aí furo da bala. O aluno pobre, ao concluir o colegial, pratica, conscientemente ou não, um ato de renúncia, de auto-exclusão; por diversos motivos, ele nem se inscreve para o vestibular. Que forças induziriam este gesto? Ocorre aí uma trama complexa de fatores como 1) predisposição cultural, 2) autoconfiança e 3) econômico. No primeiro, o ambiente cultural nativo não inclui a formação superior como uma opção concreta e, em casos mais profundos de marginalização cultural, nem abstrata. O baixo nível de autoconfiança vitimiza o jovem que, desejando continuar os estudos, se julga - às vezes, sem razão - incapaz de competir pelas melhores vagas com seus contemporâneos mais bem lastreados. E o fator econômico: muitos jovens, desejando continuar os estudos e munidos de autoconfiança acadêmica, não conseguem fechar a equação da auto-sustentação na universidade, até porque esta freqüentemente inclui, como termo complicador, a "necessidade de ajudar em casa". Não parece muito difícil desenhar programas para superar cada um dos fatores acima - campanhas educativas para os dois primeiros e bolsas para o terceiro. Aí a ação governamental pode ser eficaz: viabilizando economicamente o estudante de baixa renda que, por seus próprios méritos acadêmicos, tenha conseguido uma vaga na universidade pública. Oferecendo por ano 100 mil novas bolsas de um salário mínimo mensal, a carga financeira cresceria R$ 300 milhões ao ano até se estabilizar, ao final do quarto ou quinto ano, em torno de R$ 1,4 bilhão anual. Uma enérgica onda de motivação percorreria as camadas mais pobres da população, agitando o ensino básico e trazendo aos vestibulares um contingente adicional de 1 milhão de novos candidatos, garantindo às universidades um salto qualitativo considerável. Os bolsistas ocupariam cerca de um terço das vagas existentes no ensino público superior. Provenientes dos estratos mais pobres, enriqueceriam e diversificariam a vida no câmpus, conferindo-lhe um salto qualitativo de efervescência intelectual, arrancando-o da pasmaceira a que se referiu, com propriedade, o professor Cristovam Buarque. E a nossa universidade pública se desvencilharia de vez de seu jeitão anacrônico e indefensável de aristocracia e casta, projetando-se no País como instituição republicana vigorosa, democrática, crítica, produtiva e socialmente ligada. Veríamos, sem dúvida, um renascimento nas humanidades, nas ciências e nas artes. * Professor do Departamento de Estatística da Unicamp, diretor científico da TecnoMetrica Estatística Ltda (Campinas)

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