Por que os analfabetos resistem a aprender?

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Há muitos anos faço um ritual de passagem com os mais de 80 mil adultos que alfabetizamos por este Brasil afora, com a didática desenvolvida pelo Grupo de Estudos em Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (Geempa): a queima das carteiras de identidade antigas, com a marca do dedão no lugar da assinatura. Trata-se de um ritual que simboliza a entrada desses adultos no mundo dos letrados, com uma nova carteira de identidade, assinada por eles, como um passaporte para a escrita e a leitura. Em dezembro renovei esse ritual com os funcionários terceirizados do governo federal, alfabetizados em três meses com essa didática desenvolvida há 33 anos pelo Geempa. Primeiro, para a alfabetização de crianças e, deste 1999, testada e aprovada também na alfabetização de adultos. A diferença entre essa didática e as outras é que ela está centrada na formação do professor. Sem capacitação específica para alfabetizar adultos, um professor pode ter até doutorado em sua área que não é capaz de responder às questões intrínsecas do analfabeto, que o levam a não querer aprender ou a desistir no meio do caminho. Por isso o governo não consegue, nunca, acabar com o analfabetismo no Brasil, por mais que haja esforços nesse sentido. O erro está em pensar que a alfabetização de adultos se faz com o mero cadastramento de pessoas analfabetas e sua inclusão numa sala de aula, onde voluntários cheios de boa vontade tentam ensinar o que não aprenderam, pois não têm a ciência pedagógica necessária para entender os processos cognitivos, psicológicos e culturais do aluno. Uma alfabetização só se completa com preparação do professor, antes e durante a alfabetização, e com a aplicação de testes de avanços parciais nas aprendizagens. Principalmente, com leitura e escrita de textos como critérios fundamentais para considerar alguém alfabetizado. Adultos padecem muitíssimo como analfabetos. Pode parecer, por isso, que eles estão ávidos e prontos para se inscrever, se lhes for oferecida a possibilidade da alfabetização. Grande e ledo engano! Eles são muito arredios. Contraditório que eles sejam arredios, sentindo como grande humilhação o embaraço em situações que a nós, leitores, parecem simples, como a de enganar-se e entrar em banheiro público de outro sexo. Enganar-se por ciladas como a da letra M, que pode representar Mulher ou Masculino. Sem um desenho que represente o homem e a mulher, fica difícil encontrar a porta certa. Por que eles resistem em voltar a tentar a alfabetização, se se sentem cidadãos pela metade quando, em dia de eleição, votam sem conseguir ler os nomes de seus candidatos? Por que tanta resistência, se eles não conseguem preencher uma ficha de emprego nem podem aceder a qualquer trabalho que envolva a competência do ler e do escrever e, assim, perdem tanto profissionalmente? Pior que tudo é, na expressão de muitos deles, não poder ter segredos. Ao receber uma carta, ter de pedir a outro que a leia e, ao enviar também uma carta, ter de pedir a outro que a escreva. Assim mesmo, resistem. Arredios por vergonha de permanecerem analfabetos, vergonha mesmo, porque atribuem a si mesmos a culpa por ainda não terem aprendido. Pensam-se de cabeça dura, fracos de idéia, herdeiros de deficiência familiar ? ?lá em casa ninguém conseguiu!? ?, considerando-se uma raça moral de incapazes. Resistem, portanto, porque já tentaram muitas vezes sem sucesso e internalizaram o estigma de que eles é que não são inteligentes. Atacar e vencer esse estigma é o grande desafio que nos colocam 15 milhões de analfabetos absolutos neste país, padecendo, amarga, mas escondidamente. Passei o ano inteirinho de 2003 no convívio diuturno com adultos ou crianças se alfabetizando, com professores e com gestores públicos, no Ceará, no Piauí, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Goiás, em Brasília, no Paraná e no Rio Grande do Sul, acompanhando a façanha da Ana 3, a Ação Nacional de Alfabetização em três meses, que em parceria com o MEC conseguiu alfabetizar de verdade 30 mil analfabetos. Destes, 278 são da Esplanada dos Ministérios, que renegaram seu passado iletrado na cerimônia da queima das carteiras de identidade na Câmara dos Deputados. A façanha não foi fácil. Para alfabetizar um certo tipo de adultos ? os analfabetos absolutos, isto é, aqueles que não assinam nem o nome e não conhecem letras ? é preciso profissionalismo, competência e clara escolha política. Porque eles resistem tenazmente. Primeiro, é difícil identificá-los, isto é, descobri-los. Segundo, é difícil atraí-los para que voltem aos estudos. Terceiro, é muito trabalhoso mantê-los em aula, evitar a evasão. Em quarto lugar, é dificílimo alfabetizá-los de verdade. E, por último, é ainda complicado convencê-los de que aprenderam a ler e a escrever. Sem esse convencimento, que gera orgulho e vontade de continuar aprendendo, o alfabetizado assina o nome e continua engordando a lista dos analfabetos funcionais, aqueles que não se atrapalham mais nos banheiros públicos, mas não conseguem entender um texto simples de jornal. O professor capacitado para alfabetizar é que dará ao aluno adulto os elementos imprescindíveis para que ele aprenda, não esqueça e continue aprendendo sempre, pela vida afora. Se não entendermos isso de uma vez por todas, seremos co-responsáveis pelo crime de matar cidadania, permitindo que tantos brasileiros desqualifiquem sua inteligência e se excluam do mundo dos letrados, por se considerarem incapazes, quando a ciência já demonstrou inúmeras vezes: nasceu gente, é inteligente. * Doutora em Psicologia da Inteligência pela Universidade de Paris, coordenadora de Pesquisa do Geempa, foi secretária de Educação de Porto Alegre e deputada federal (PT-RS)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.