Pela 1ª vez, negros são maioria nas universidades públicas

Marca foi atingida apesar das menores taxas de conclusão do ensino médio e de ingresso no ensino superior em relação aos brancos

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Por Daniela Amorim
5 min de leitura

RIO - Pela primeira vez, os estudantes negros (pretos ou pardos) passaram em 2018 a ser maioria dos inscritos nas instituições de ensino superior da rede pública do País - 50,3%. O dado consta do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, divulgado nesta quarta-feira, 13, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Projeto de alteração na Lei de Cotas prevê 25% do total de vagas da universidade para pessoas com renda familiar de até um salário mínimo por pessoa. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A marca foi atingida a despeito das menores taxas de conclusão do ensino médio e de ingresso no ensino superior registradas entre negros.

Em 2016, o IBGE apontava 49,5% de pretos ou pardos nas Universidades Públicas. Ainda segundo o IBGE, esse número teve uma leve queda em 2017, com 49% de presença. 

"Aumentou a autodeclaração de pretos ou pardos entre jovens", justificou Luanda Botelho, analista da Coordenação de População e Indicadores Sociais do IBGE.

Entretanto, os negros seguiam sub-representados no ensino superior público, porque são maioria na população (55,9%). A informação respalda a existência das medidas que ampliam e democratizam o acesso à rede pública de ensino superior, observou o IBGE.

O instituto menciona a institucionalização do sistema de cotas na rede pública, que reserva vagas a candidatos de alguns grupos populacionais, entre outras medidas adotadas a partir dos anos 2000 com o objetivo de ampliar e democratizar o acesso ao ensino superior.

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A pesquisadora Anna Venturini, pós-doutoranda do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), afirmou que, embora o dado mereça ser comemorado, é preciso analisá-lo com mais profundidade e menos pressa. "Primeiro, a Pesquisa do IBGE fala em instuições de ensino superior na rede pública. Ou seja, não estamos falando só das universidades, mas também dos Institutos Federais, que na prática são escolas técnicas que também passaram a oferecer cursos de graduação", disse.

Anna também ressalta que os números do IBGE não indicam para quais universidades públicas esses estudantes pretos ou pardos estão indo. "É preciso entender se são alunos que estão frequentando universidades de prestígio ou apenas universidades mais novas, que ainda estão se estruturando. Além disso, é importante saber se esses estudantes estão também nos cursos de maior prestígio, como Direito e Medicina, por exemplo". 

"Mesmo com esse dado, que, repito, precisa ser analisado com cuidado, ainda não vivemos uma situação de equidade de oportunidades. O número do IBGE pode nos induzir ao erro", conclui a pesquisadora.  

Cotas

 Frei David Santos, da ONG Educafro, afirma que os dados merecem ser comemorados. "Nós estamos trabalhando com a positividade destes dados. Ele é fruto de muito trabalho e de uma série de ações ao longo das últimas décadas", disse.

Santos enumera a criação dos pré-vestibulares comunitários em meados dos anos 90; a luta pela isenção de taxas de matrícula e pela valorização dos conteúdos da rede pública nos exames vestibulares e, claro, a política de cotas.

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"O outro lado da moeda são as fraudes que podem estar inflando esses números: pessoas brancas que se declaram negras para conseguir entrar por cotas", pondera Santos.  

Santos também gostaria que os dados do IBGE apontassem os cursos em que negros e pardos aparecem com mais frequência. "Acredito que esse dado traria uma realidade delicada para esse debate."

Ele não teme que os dados do IBGE possam ser utilizados para justificar os argumentos de quem defende o fim da política de cotas. "Penso que se o governo propõe algo como o fim das cotas, a sociedade irá se colocar contra. A sociedade já entendeu a importância e os benefícios desta política", afirmou Santos.

Estudantes

No final de outubro, o centro acadêmico mais antigo do País, o XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, elegeu pela primeira vez em sua história uma mulher negra, a estudante Letícia Chagas, de 19 anos. A eleição de Letícia pode até ser considerada uma confirmação de que existe uma maior diversidade no ambiente acadêmico, mas, segundo ela, isso ainda é insuficiente.

Leticia Chagas, de 19 anos, é aluna da faculdade de Direito da USP e primeira presidente negra eleita do Centro Acadêmico XI de Agosto Foto: Daniel Teixeira/Estadão

"Os dados não refletem o cotidiano da faculdade. Sim, é natural que exista uma maior presença de negros e pardos na universidade. A política de cotas tem sido muito importante neste sentido.  Mas, por outro lado, não existe uma política de verificação na autodeclaração. Infelizmente existem muitas fraudes. Pessoas que se declaram negras apenas para ficar com a vaga de cotas", disse Letícia.

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Ainda assim, Letícia reconhece o avanço dentro da própria instituição em que estuda. "Antigamente, os alunos diziam que era possível conhecer todos os estudantes negros da São Francisco. Diziam isso porque nós éramos muito poucos. Hoje, isso está mudando", afimou.  

Letícia nasceu em Campinas, no interior de São Paulo, e sempre estudou em escola pública.  Na família, apenas sua irmã mais velha tinha ido à universidade. "Desde muito cedo, eu sabia que estudar em universidade pública seria o meu caminho", contou.

No último ano do curso de Direito do Largo São Francisco, Lucas Módulo, de 22 anos, acredita que o dado é importante, mas incompleto. "É preciso fazer uma análise crítica desse número. É preciso entender se esse dado está inflado com as fraudes que hoje acontecem no sistema de cotas. Sou do Comitê Antifraudes às Cotas Raciais da USP e, infelizmente, hoje, o número de fraudes ao sistema é um escândalo", disse.  

Módulo também gostaria que os dados do IBGE mostrassem quais os cursos que recebem mais estudantes negros. "Precisamos saber se em cursos como Direito ou Medicina essa presença também é relevante", disse.  "De qualquer forma, a política de cotas tem sido muito importante e tem feito com que pessoas segregadas do ambiente acadêmico começassem a frequentá-lo", completou.

Unicamp ultrapassou meta neste ano

No último ano, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) teve um salto no número de ingressantes autodeclarados negros ou pardos, passando de 23,9%, em 2018, para 35,1% neste ano - superando a meta estabelecida pela instituição de 25%. No entanto, quando se olha especificamente para cada curso, a situação não é homogênea. 

Enquanto algumas graduações, como Música, Comunicação Social ou Ciências Sociais, não alcançaram o porcentual estabelecido, outras superaram. Eliana Amaral, pró-reitora de graduação da Unicamp, destaca que a área da saúde como a que tem proporcionalmente mais alunos negros. O porcentual chegou a 41,8% em Medicina neste ano e 45%, em Odontologia. 

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"Na Unicamp temos o lema: diversidade é qualidade. O que temos visto é que a qualidade do nosso ensino melhorou", disse Eliana. 

Segundo ela, os alunos que entram por cotas de escola pública, em geral, têm no vestibular notas menores do que os de escola particular, mas a situação se reverte ao longo do curso. "No comecinho da graduação ainda pode ser que tenham notas um pouco menores. Mas, do meio para o fim, o desempenho se iguala ou supera. Nossa experiência tem sido muito positiva."

Rede privada

Os pretos e pardos ainda permaneceram minoria nos cursos de ensino superior na rede privada de ensino em 2018. Eram 46,6% do total.  Em 2017, na rede privada, eram 46%. Em 2016, esse número era ainda menor: 43,2%. 

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