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Pais tentam ‘blindar’ filhos pequenos das más notícias sobre a pandemia no Brasil

Informações sobre adoecimento de parentes e colapso no sistema de saúde chegam aos celulares a todo o tempo; adultos abafam a dor em choros no chuveiro e lágrimas secadas às escondidas

Por Julia Marques
Atualização:

No reino das fadas onde vive Clarissa, de 6 anos, a covid-19 é um problema superado. Graças ao trabalho da menina e das outras duas presidentas do mundo encantado, que providenciaram vacinas para todos – sim, fadas sensatas. A mãe dá corda às invenções da filha e prefere que exista esperança pelo menos no reino imaginário de Clarissa. 

Famílias com crianças pequenas tentam preservá-las do horror da pandemia no País. Notícias sobre recorde de mortes e adoecimento de parentes e amigos chegam aos celulares a todo o tempo. Os pais abafam a dor em choros no chuveiro e lágrimas secadas às escondidas. Com os filhos, inventam brincadeiras, fantasias, dias temáticos, acampamentos no sofá. 

Henrique, de 4 anos, ergue seu martelo do Thor enquanto brinca com a mãe Patrícia Yanez de 45 anos: "Ele sabe que tem um vírus chato, mas nada mais do que isso" Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

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Em um apartamento em Brasília, a professora Ludmila Tavares, de 35 anos, lê histórias para a menina, confecciona casinhas de bonecas, foguete de sucata. Pirâmides de papel construídas para as aulas viraram desculpa para falar do Egito. E, agora, Clarissa planeja uma expedição arqueológica para achar nas tumbas tesouros tão valiosos que comprem não só uma boneca LOL como doses de vacina

No vocabulário de Rafael, de 3 anos e meio, o coronavírus é palavra inexistente. "Escolhi não contar", diz a mãe Tatyana Pinotti, de 36 anos. Quando era criança, ela lembra de ter se impressionado com imagens na TV da Guerra do Golfo, no Oriente Médio, e não entendia que as bombas estavam longe. Agora, tenta afastar as cenas de enterros em covas coletivas e hospitais lotados do filho. 

"Se algo tão distante me tocou tão profundamente quando eu tinha o dobro da idade dele, como dizer que o vírus não está do outro lado do mundo, mas ali, da porta para fora?". Com o marido e a avó do menino, evitam conversar sobre o tema quando Rafael está perto. "No fim do dia, a marca de 3 mil mortos. A gente não consegue se acostumar. É uma porrada."

Escondida no banheiro para ver notícias e vídeos sobre a pandemia, Tatyana chora. O menino vê o rosto vermelho da mãe, acha logo a solução. "Um minuto, já sei." Corre e volta com a mão besuntada de pomada – a mesma que protege a pele de bebê. "Faço o que posso para deixá-lo feliz. Depois, pretendo contar da forma mais leve que conseguir", diz a mãe, que se mudou com a família para o interior paulista. Apesar da angústia, ela se considera privilegiada por ter espaço no campo. 

Rafael, filho de Tatyana, não sabe o que é o coronavírus Foto: Tatyana Pinotti/Acervo pessoal

Henrique, de 4 anos, enfileira a coleção de dinossauros no chão do apartamento, em São Paulo, e, quando tem de sair por algum motivo, a máscara ninja dá poderes especiais. Vestido de herói, o menino ergue seu martelo do Thor, que elimina qualquer ameaça. "Ele sabe que tem um vírus chato, mas nada mais do que isso", diz Patrícia Yanez, a mãe, uma administradora de benefícios, de 45 anos. 

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Patrícia também escolhe as máscaras mais divertidas para ela própria usar e já foi até fantasiada à padaria para agradar o filho, que vê o disfarce como superpoder. À noite, depois que o menino dorme, a realidade troca de lugar com a fantasia e pai e mãe vão, enfim, se atualizar sobre o caos no País. “Todos os dias, tem alguém que viu um parente partir. Olho a carinha inocente do Henrique, a boca aberta dormindo e penso: ‘Como chegamos nisso?” Patrícia faz acompanhamento psiquiátrico para dar conta das emoções desorganizadas pela pandemia e a distância dos parentes.

“Tem hora que o choro simplesmente vem, parece que está sempre pronto, sempre ali”, diz Elisângela Lima, de 28 anos, que mora em Canoas (RS). O Estado está há semanas em colapso, com restrições a várias atividades. A falta de perspectiva de que o filho, de 1 ano e 9 meses, desbrave o mundo lá fora e volte a reconhecer os parentes desanima. O brinquedo preferido de Arthur  virou o par de tênis – que ele associa a sair de casa para brincar. Quando busca o sapato no quarto, a mãe desaba. "Tento me conter enquanto estou com ele. Tem dias mais fáceis, outros mais difíceis".

Já Bruna Barbosa, de 31 anos, busca um canto sossegado no apartamento, no Rio, quando não está bem, e passa o bastão dos cuidados dos filhos ao marido. Ela teve de superar o luto pela perda do pai, que morava longe, ver o enterro por vídeo e, sem tempo de processar tudo, voltar a cuidar do filho, de 1 ano, e da filha, de 4. Bruna e a menina têm aula de ioga pelo celular. O pai promove treinos, com socos em travesseiros, para se tornarem Power Rangers. E, assim, contornam juntos a dor. 

Segundo as mães, os sentimentos são contraditórios. Pesa a tentativa de preservar as crianças, mas a ingenuidade delas traz leveza. "Saber que temos o Henrique dá esperança de que as coisas podem ficar melhores", diz Patrícia. 

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Proteção. Para Rosely Sayão, psicóloga, não é possível "blindar" completamente a criança de emoções relativas à pandemia. Elas têm conexão intensa com os pais e percebem as emoções deles, mesmo se não verbalizadas. "O que podemos fazer é evitar os detalhes", diz Rosely, que cita imagens de enterros, comuns nos noticiários. 

"A criança até 12 anos não tem recursos pessoais para lidar com essas questões. Se nós adultos ficamos espantados com notícias, imagina como cai sobre os ombros da criança, que não sabe o que fazer". Rosely participou de uma live sobre o assunto no Estadão. Na pandemia, segundo a psicóloga, a insegurança das crianças frente à doença só não foi total graças ao esforço das famílias - e, especificamente, das mães - de oferecer suporte emocional aos filhos.

Com o prolongamento da crise sanitária, porém, aumentam as dificuldades. “De um lado, há uma situação externa grave da pandemia e, de outro, pais muito desgastados, preocupados com o que está acontecendo. Neste momento, eles estão esgotados." Segundo a psicóloga, ao tomar contato com informações ou depoimentos relativos à pandemia, os pais podem comunicar o que estão sentindo aos filhos. 

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“Uma grande lição que podemos transmitir aos filhos é o reconhecimento das emoções, inclusive de permitir o choro na frente das crianças”, diz Rosely. “Isso ajuda a criança a perceber que as questões são superáveis. São intensas e depois vão diminuindo até a pessoa conseguir levar adiante as ações cotidianas."

Para Guilherme Polanczyk, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Universidade de São Paulo (USP), as famílias vivem o momento de formas diferentes, de acordo com recursos que têm. Famílias com dificuldades econômicas ou crianças expostas à violência estão passando por situações mais estressantes do que aquelas que têm refúgio em sítios ou apoio de parentes. 

O colapso no sistema de saúde adiciona mais uma camada de incerteza e estresse a todas as famílias. “É o extremo de uma situação de insegurança, de não termos muito no que nos agarrar. As crianças não estão preparadas para isso.” Crianças mais novas, de até 7 anos, não precisam ser expostas a conteúdos ligados à morte pela covid-19 ou ao colapso no sistema de saúde. 

Mas é importante que os pais entendam quais informações os filhos já têm sobre o assunto, obtidas por meio do acesso à internet ou de conversas com colegas. “É difícil ter crianças sem acesso à internet a partir da idade escolar. Se elas estão expostas (às informações) de algum jeito, os pais precisam falar sobre. Se não falam, podem passar a sensação de que isso é algo que ela também não pode falar.”

Sintomas como irritação, tristeza, raiva ocorrem em adultos e crianças e, não necessariamente, indicam transtornos. É preciso ficar atento, porém, à intensidade desses sentimentos e à constância. “Quando começa a atrapalhar a capacidade de se concentrar, trabalhar, se divertir. Quando há interferência sobre sono, sentimentos de muito pessimismo, desesperança, desespero e sensação de ameaça constante. Essas são situações que preocupam.” Nesses casos, vale buscar orientação profissional. 

Preste atenção

  • Não é possível blindar completamente as crianças. As crianças percebem as emoções dos pais, mesmo que não sejam verbalizadas. Mas os mais novos podem ser poupados de detalhes mórbidos e cenas chocantes com os quais não têm recursos emocionais para lidar.
  • Pais devem saber quais informações as crianças já têm sobre a pandemia e o colapso no sistema de saúde, obtidas pela internet ou por meio de colegas. Dependendo do que saibam, é preciso abordar o assunto para que não vire um tabu. 

  • Quando pais são expostos a notícias desagradáveis sobre a pandemia, podem se afastar por um tempo das crianças, pedir um momento para digerir as informações. Mas não precisam esconder o choro. A exposição das emoções pode ser benéfica para que a criança entenda que os sentimentos vêm, mas podem ser superados.

  • Crianças mais vulneráveis, que convivem com violência em casa ou dificuldades financeiras, estão expostas a fatores de estresse ainda maiores. A persistência e intensidade de sentimentos como tristeza, irritação, desespero e pessimismo são sinais de alerta para buscar ajuda profissional.  

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