Oficial para comunidade surda, Língua Brasileira de Sinais tem diferentes 'sotaques' pelo País

Regionalismos também influenciam esse tipo de comunicação; disciplina em universidade mostra variações

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Por Gonçalo Junior
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Mandioca, macaxeira, aipim e castelinha são nomes diferentes da mesma planta. Semáforo, sinaleiro e farol também significam a mesma coisa. O que muda é só o hábito cultural de cada região. A mesma coisa acontece com a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Embora ela seja a comunicação oficial da comunidade surda no Brasil, existem sinais que variam em relação à região, idade e até o gênero de quem se comunica. A cor verde, por exemplo, possui sinais diferentes no Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo. São os regionalismos na língua de sinais.

Professora universitária, Sueli Ramalho é surda e foi uma das alunas do curso Foto: Felipe Rau/Estadão

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Essas variações são um dos temas da disciplina “Linguística na Língua de Sinais”, oferecida pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) ao longo do segundo semestre. “Muitas pessoas pensam que a língua de sinais é universal, o que não é verdade”, explica Angélica Rodrigues, professora e chefe do Departamento de Linguística, Literatura e Letras Clássicas da Unesp. “Mesmo dentro de um mesmo país, ela sofre variação em relação à localização geográfica, faixa etária e até o gênero dos usuários”, completa a especialista, também vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara.

Os surdos podem criar sinais diferentes para identificar lugares, objetos e conceitos. Em São Paulo, o sinal de “cerveja” é feito com um giro do punho como uma meia-volta. Em Minas, a bebida é citada quando os dedos indicador e o médio batem no lado do rosto. Também ocorrem mudanças históricas. Um sinal pode sofrer alterações decorrentes dos costumes da geração que o utiliza.

Rimar Segala, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), enviou um vídeo ao Estadão com exemplos de variações. Uma delas é a contagem dos números, de um a dez, que também muda de Estado para Estado. Não existe certo ou errado. Todos os sinais são aceitos. “As pessoas podem achar que a variação é isolada ou negativa, mas não é assim. A variação evidencia a vitalidade da língua”, explica a professora.

O curso da Unesp foi concebido como bimodal, ou seja, possui apresentações em Português e em Libras. Nas aulas online, cada professor apresenta o conteúdo, mas em duas línguas diferentes. Neste semestre, o curso foi o mais concorrido entre todos do programa de pós da universidade. A turma foi formada por 145 alunos, de várias partes do País, com 65% surdos.

Uma das alunas foi a professora universitária Sueli Ramalho. Ela é surda, com perda auditiva bilateral neurológica profunda. Ela conhece as variações da língua de sinais desde criança: sua mãe é carioca e seu pai, que já morreu, era paulista. “Eles continuaram com os sinais de origem e o entendimento se manteve”, diz a professora de pós-graduação da Uninove. “Todas essas diferenças mostram a riqueza da língua. Ela é viva e deve ser explorada, explicada e ganhar cada vez mais visibilidade”, completa a educadora de 55 anos.

Especialistas afirmam que a variação mostra como a língua de sinais está distante da mera reprodução icônica das coisas. Ela não é mímica, mas é o resultado da interação entre os surdos. É uma forma da fala, ainda que não seja oral. A língua de sinais possui morfologia, sintaxe e regras gramaticais próprias, como um idioma independente. Por isso, alguns alunos do curso contatados pelo Estadão preferiram não conceder entrevista em Português e pediram ajuda de um intérprete de sinais. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o País possui cerca de 9,7 milhões de surdos ou pessoas com algum grau de deficiência auditiva.

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“A Libras é a língua materna para os surdos. O português, ou outra língua, passa a ser a sua segunda língua. A Libras contribui para a inserção em qualquer espaço social”, diz a intérprete Roseli Marcia Benati.

A professora de Libras é mãe da jogadora de futebol Stefany Krebs, a primeira surda da história do futebol feminino do Palmeiras. Contratada em janeiro, ela disputou o Campeonato Brasileiro feminino deste ano e provocou uma mudança sutil entre as colegas: muitas estão aprendendo a língua de sinais. Nos treinos e nos jogos, parte dos gritos virou sinais e gestos.

O desafio da máscara

Independentemente do sinal que utilizem para se comunicar, os surdos vivem desafios adicionais na pandemia. A máscara, item obrigatório de prevenção, dificulta a leitura labial, usada como suporte para a comunicação. Surdos estão especialmente acostumados a usar expressões faciais e corporais para entender o que é comunicado. Os lábios também ajudam na pronúncia de palavras básicas, como “pão”, “água” e “dois”. Com essa limitação, a comunicação fica mais difícil. É importante lembrar que nem toda pessoa surda utiliza a língua de sinais.

Para driblar o desafio das máscaras tradicionais durante a pandemia, modelos transparentes permitem ver a leitura labial. Foto: Francois Lenoir/REUTERS

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Nesse caso, uma solução é o uso de máscaras transparentes. Diferentemente do modelo clássico, ela permite ver a leitura labial. Josiane Poleski, colaboradora da Confederação Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS), aponta outras saídas. “Primeiramente, peço para a pessoa tirar a máscara. Se ela aceitar, ótimo. Caso contrário, peço para ela escrever”, diz.

A professora Sueli, que também utiliza a leitura labial como suporte para a comunicação, confessa que também está recorrendo ao papel e caneta. “Quando as pessoas vão responder, elas querem pegar a minha caneta. Aí, eu não quero deixar, com receio de contaminação. É uma guerra de comunicação”, brinca a especialista.

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