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O fracasso do ‘jeitinho’

Por que não há mais brasileiros em grandes laboratórios do exterior?

Por Alysson Muotri
Atualização:

SÃO PAULO - A maioria dos pesquisadores de ciências biológicas que sai do Brasil para o exterior busca aperfeiçoamento científico, melhores condições de trabalho e exposição a uma nova massa crítica. Muitas vezes, esse importante e difícil período de aperfeiçoamento acadêmico ocorre logo após o doutoramento, daí o termo adaptado do inglês, pós-doc.

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Infelizmente, encontramos poucos brasileiros nos centros de pesquisa mundo afora. A chance de um deles conseguir uma posição de pós-doc em laboratórios competitivos é muito baixa. Isso ocorre, entre outros motivos, pela falta de incentivo de nossas agências de fomento. Mas também pela postura paternalista do próprio pesquisador.

Nossa comunidade científica não está acostumada a críticas e transforma discussões relevantes em assuntos pessoais. Aliás, parte de nossa cultura valoriza a forte ligação pessoal entre colegas de trabalho, criando redes de proteção e autorrecompensa. Um exemplo é a quase inexistência de teses de doutorado rejeitadas nas universidades brasileiras.

No competitivo campo da pesquisa biológica de ponta, nossos candidatos ao pós-doutoramento já começam perdendo, principalmente para doutores de países asiáticos e europeus, porque não têm bolsa nem publicações competitivas. Muitas vezes, acabam estudando em laboratórios de segundo nível, e o pior: sentem-se privilegiados por isso.

A situação pode ficar ainda mais drástica se terminarem o treinamento sem uma clara evolução científica, medida principalmente pela qualidade das publicações no exterior. Assim, o doutor acaba por comprometer seriamente sua carreira acadêmica.

Um bom período de pós-doc é o que abre oportunidades para posições de maior destaque, tanto em universidades quanto em indústrias de biotecnologia. A rede de comunicação pessoal nesse nível permite um retorno financeiro e intelectual ao país de origem, pois abre oportunidades para outros doutores brasileiros.

Na verdade, a melhor condição de um pós-doc é aquela em que se tem a oportunidade de escolher o próprio destino. Para isso, é preciso saber a linha de pesquisa, como aplicar conhecimentos já obtidos no doutorado e se o laboratório é realmente um líder na área (algo relativamente fácil de deduzir pelas últimas publicações do grupo e pelas posições atuais dos pós-doc que por lá passaram). Esses laboratórios, muitas vezes, têm uma fila de espera de um ano e, por isso mesmo, o planejamento durante o doutoramento é essencial.

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Em seguida, vem o contato inicial com o pesquisador principal (ou principal investigador, PI). Aí surge mais um problema: o contato deve ser feito com cautela. Observo falta de humildade do doutorando brasileiro, que prioriza condições salariais e passagem área, e erros comuns, como informalidade dos pedidos, falta de domínio do inglês e desconhecimento do cenário internacional.

Tenho tido acesso a uma série de cartas de estudantes brasileiros, a partir de consultas de colegas, que envergonham qualquer patriota. Contatos escritos requerem um inglês impecável, com a descrição sucinta dos melhores resultados de sua tese e o porquê de seu interesse naquele laboratório específico.

Nesse contato, é bom o candidato sugerir uma visita ao centro para apresentar seu trabalho e conhecer mais as linhas de pesquisa, atuais e futuras, do centro, e projetos de outros pesquisadores. Eles poderão ser seus colegas e é importante ter uma opinião sobre o trabalho desenvolvido.

Mas não dá para esperar que o laboratório financie passagem e estadia. Mais uma vez, o planejamento é essencial. Esse investimento terá de ser garantido pelo próprio candidato, que também deve explicar de que forma pretende se sustentar, com uma bolsa, por exemplo. Não é regra os laboratórios pagarem os colaboradores. Centros menores enfrentam limitações de verba para fazer isso. Essas dicas poderiam ser melhor colocadas pelos próprios orientadores do doutorado, mas muitos não têm esse cuidado.

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Esse tipo de atitude irrealista prejudica não só o próprio candidato, mas futuras gerações de pesquisadores, que sofrerão com a má reputação de alguns poucos.

Talvez a solução para interromper o ciclo de paternalismo seja a reavaliação do ensino de ciências. A valorização do conteúdo deveria ser trocada pela visão crítica e racional. Os alunos não têm ideia de que pesquisadores são profissionais que vivem de fazer experimentos, de que o dia a dia no laboratório é muito excitante e de que eles fazem parte da geração que será responsável pelas grandes descobertas científicas, principalmente na área de células-tronco e medicina regenerativa. Acredito que quanto antes tiverem essa consciência, melhor.

Além disso, a criatividade que rege nossa sociedade deve ser explorada como virtude. O famoso "jeitinho" inzoneiro de que tanto nos orgulhamos pode ser justamente nossa pior qualidade. A criatividade do pesquisador brasileiro é o que ele tem de melhor. Mas, infelizmente, o paternalismo interfere nessa complexa malandragem. A união da crítica com a criatividade é o maior bem que podemos deixar para futuras gerações de cientistas.

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*Alysson Muotri, de 34 anos, é professor da Universidade da Califórnia e pesquisador de desenvolvimento neural com células-tronco

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