O encontro entre livro, leitura e leitor

É isso que a prática chamada ‘mediação de leitura’ promove em bibliotecas públicas, nas escolas, em casa ou qualquer outro local

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Por Bia Reis e Cristiane Rogerio
Atualização:
9 min de leitura
Ilustração: André Neves 

SÃO PAULO - Nas prateleiras de dezenas de bibliotecas, livrarias e casas brasileiras existe uma senhora chamada Dona Sofia. Trata-se de uma professora aposentada, que mora no alto de uma entre tantas colinas de uma bucólica região. Os moradores dos arredores não sabem, mas a casa de Dona Sofia é diferente das outras: tem poesias escritas pelas paredes de todos os cômodos! Certo dia, ela se dá conta de que não há mais espaço para escrever e, então, decide criar cartões poéticos para distribuir seus poemas preferidos aos moradores da cidade. Esta é uma já clássica história do autor pernambucano André Neves, narrada no livro A Caligrafia de Dona Sofia, que teve a primeira edição em 1992 e está desde 2007 com a Editora Paulinas.

É inspirada em uma professora de pintura que ele teve em Recife, a renomada artista plástica Badida, com quem também aprendeu a amar ainda mais poesia. Era, então, simplesmente uma memória que ele quis colocar em livro. Mas uma memória do que, na educação, chama-se “mediação de leitura”, uma prática que pode acontecer de várias maneiras com o intuito de promover o encontro entre livro, leitura e leitor. Não à toa, Dona Sofia vem se tornando um símbolo da “mediadora ideal”, mesmo que a primeira intenção de André não tenha sido esta, por se tratar de uma mulher que tem muito repertório de leitura e quer compartilhar o que ama ler.

Esta poderia ser, no entanto, a premissa do papel do mediador de leitura: gostar de ler e gostar de contagiar o outro com a sua paixão por determinado livro. Mas... como? Primeiro, talvez, entendendo que não há receitas prontas. Desde que nasce, cada pessoa irá descobrir seu caminho leitor. E ambientes e objetivos diferentes pedem atitudes diferentes.

“O professor que tem o objetivo de mediar, de apresentar uma leitura como projeto pedagógico naquele lugar, tem um plano, é uma tarefa educativa, mesmo que seja a de formação literária, formar repertório, observar linguagens. Então é dever do professor preparar esta leitura, ver que recursos são necessários, possibilidades para provocar o diálogo a partir daquele livro”, diz Maria José Nóbrega, assessora pedagógica de projetos sobre leitura em diversas escolas de São Paulo. “Já em situação familiar, o pai ou a mãe, enfim, o adulto não tem que preparar algo como se tivesse um fim pedagógico. Esta mediação tem que ir mais livre, com a possibilidade até de se surpreender com a leitura junto com a criança. Quanto mais espontânea e intuitiva, mais bacana é o encontro”, continua.

Mesmo em um espaço profissional de leitura, como uma biblioteca pública, por exemplo, a mediação pode acontecer de forma muito diversa. Assim como as vitrines e os espaços atrativos (ou não) das livrarias, os espaços físicos das bibliotecas já são mediação. Só que os profissionais dos equipamentos públicos podem encontrar missões, digamos, mais complexas.

Nas bibliotecas dos CEUs em São Paulo, há ainda uma grande parte da população que não se sente legitimada a entrar, principalmente um público jovem e adulto que nunca teve acesso ao livro. “É primeiro um trabalho de convencer aquele leitor tardio de que ele pode, sim, gostar de ler. Tirar o livro deste altar inatingível, que a sociedade instituiu, e trazê-lo como um objeto cotidiano, como água, de direito e de todos”, afirma Carlos Otelac, bibliotecário e contador de histórias do CEU São Mateus. Uma das primeiras ações que eles fazem diante de um usuário novo é uma espécie de entrevista.

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“Quando entra uma pessoa que não sabe o que quer, fazemos quase uma ‘psicologia literária’(risos). Vamos tentando entender os interesses dela, seus gostos por determinados assuntos. Às vezes você encontra um autor e começa a seguir tudo dele, ou ele leva a outro, e vai criando repertório, pode se atrair pode determinada linguagem ou gênero. Isso é algo que acontece a todos nós”, completa Carlos. Nestas situações, segundo ele, há muitos mitos que ficam em evidência, como o fato de que ler é algo natural quando, na verdade, requer esforço.

“Para se ter uma ideia, tem gente que não sabe nem que há livros que podem nos fazer rir. Penso que o começo é o ponto sensível de tudo e podemos descobrir que a pessoa ou a criança já tem uma memória ruim de leitura e, assim, rever com ela estes passos e, quem sabe, que descubra que todos podem ler de alguma forma.”

Ilustração: Bruna de Assis Brasil 

Obstáculos. Todas estas dificuldades independem da classe social. A falta de acesso à leitura toca em outras fragilidades nossas, como a falta de escuta. Colocar-se no lugar do outro é uma das premissas de quem pretende promover o encontro do livro com o leitor. A outra é sua própria bagagem leitora. Seja nas escolas, bibliotecas ou outras instituições – quem é o mediador tem, no entanto, um peso maior do que qualquer tipo de prática de sucesso de algum lugar.

“A mediação mais forte - independente das variáveis ambiente, cultura, número de pessoas envolvidas etc - é o quão leitor é esse mediador, o quanto ele leu. Numa sociedade em que vivemos a ausência do tempo, a leitura muitas vezes fica ameaçada. O mediador pode conhecer técnicas, estratégias, mas o fundamental é ler. Simples assim”, diz o educador e pesquisador Giuliano Tierno, criador do curso de pós-graduação A Arte de Contar Histórias na Contemporaneidade e um dos idealizadores d’ A Casa Tombada – Lugar de Arte, Cultura e Educação, no bairro de Perdizes, em São Paulo.

“Com a prática de dessacralização do livro, de transformá-lo em algo comum, que se pode pegar, montar castelo, pular página, tem de vir a figura de alguém que tem experiência leitora acumulada e que, na hora que está conversando com leitor, traz elementos. Sou de um tempo em que ia à vídeolocadora e escolhia um filme porque o atendente havia contado a história. A gente alugava pela narrativa.”

A mediação em si tem, então, diversos caminhos a percorrer até que ela aconteça. A narração oral ou “contação de histórias” é das mais usadas. Mas todos os envolvidos têm um dilema: se e narração de histórias oralmente é uma prática artística, seria justo o educador ou bibliotecário se sentir obrigado a fazer? E, pelo mesmo motivo, seria dever do contador de histórias a função pedagógica de mediar o livro? Para Giuliano, que pesquisa o papel do narrador em contextos urbanos, há que se diferenciar as intenções das práticas e acolhê-las todas.

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“Oralidade e literatura são coisas muito diferentes. Para justificar a oralidade, se criou esse vínculo. De alguma forma, os contadores de história encontraram aí uma possibilidade de trabalho. Tem contadores que fazem efetivamente o trabalho com o livro, com a narração literária. E há contadores que são os que não estão interessados no livro, que querem contar a história. Mas as políticas públicas sempre valorizaram mais a literatura, o livro, e muitas vezes o interesse do contador não é o fim (o livro), mas sim o meio (a narração). E não me vejo sozinho nisso. Eu particularmente me inspiro em muitos livros, mas o livro não é meu fim. Estudo os livros para poder contar as histórias. Acho que contador de história não é mediador de leitura, ele pode contribuir para que o ouvinte vá atrás do livro, mas às vezes ele é apenas um contador de história. E os dois são muito importantes”, afirma.

A contação de histórias também é prática de Carlos Otelac, no CEU São Mateus. Como trabalha com público de todas as idades, a narração é assistida pelos bem pequenos, crianças da escola do ensino fundamental da unidade, bem como os projetos que envolvem alunos do EJA (Educação de Jovens e Adultos).

“Para mim é maravilhoso, boas histórias podem ser contadas para qualquer público. E agora temos mais os projetos com saraus também, que tem o fazer textual, as pessoas desenvolver seu jeito de se expressarem.” Para Carlos, todas estas atividades têm características próprias, valores em separado e até objetivos distintos. “Muitas vezes, acaba sendo também uma mediação da comunidade com o espaco cultural público! Como lugar de exibir seus talentos, como fórum para passar suas mensagens, como um lugar em que todos têm algo a compartilhar em várias artes, com várias linguagens”,

Mostra literária. O autor da história da Dona Sofia, que abre esta reportagem, há cinco anos fez sua primeira “exposição literária”, como ele denomina. Foi com o livro Tom (Ed. Projeto), em que narra de forma poética e emocionante a relação de um menino autista com o mundo. Com Nuno e as Coisas Incríveis (Ed. Jujuba), do ano passado, também surgiu a ideia de se tornar uma mostra visual. Ela nasceu em uma livraria, a NoveSete, especializada em publicações de literatura infantojuvenil, e agora percorre espaços escolares.

A experiente professora de leitura Sílvia Casatle, assim que viu a mostra na livraria foi conversar com a editora sobre a possibilidade de levá-la ao Colégio Santa Cruz, onde está há 15 anos e onde hoje trabalha com crianças de segundo e terceiro do ensino fundamental. Impactada com a obra em si – a história de um menino que se comunica apenas por desenhos e é desprezado por uma menina que “transforma palavras em arte” – ela entendeu que levar o projeto para dentro da escola poderia ser uma maneira diferente de oferecer o encontro deste livro com as crianças.

“Com a chegada destes tipos de livros ilustrados ao nosso mercado, me questionei ainda mais por formas de ler, venho estudando muito”, diz Sílvia que notou, então, que a mediação precisava dar um outro passo: para ler estes livros em que texto e imagens dialogam de uma maneira especial, era necessária outra sensibilização. Durante semanas, fez um trabalho que foi se dando em etapas: primeiro com vários livros ilustrados. Depois, uma degustação do próprio Nuno de várias maneiras diferentes: leu o somente o texto, depois uma vez eles liam só as imagens, depois a leitura dela em voz alta do texto com as imagens que eles já liam, depois foram estimulados a identificar os detalhes do projeto gráfico e, assim, foram se aproximando da complexidade do tema, do direito de cada um ser como quiser ser. As interpretações e até os incômodos apareciam.

“Nessa situação de mediação, ficamos dosando até onde damos a resposta a alguma pergunta, até onde a gente vai esperar para que alguém do grupo traga as questões, para dar liberdade de eles pensarem outras hipóteses. E eu dizia: algumas perguntas podemos guardar para perguntar para o André”, conta. E foi aí que ela notou que o trabalho foi aproximando as crianças não só do texto e da imagem, mas também do autor. “Foram se sentindo cada vez mais à vontade de se colocar na roda de conversa e eu fui notando quanto de repertório cada um já tinha, como elaboravam determinadas questões que o livro provocava”. Eles levaram o livro para a casa, mostraram para a família e quando a exposição foi para a escola, as mesmas crianças levaram os pais e foram mediadoras de tudo: do livro e da mostra. “Ficaram íntimos do livro e da história. Cheguei a ouvir de um pai que a cada leitura que faziam em casa, algo novo aparecia. Uma coisa se ligou à outra.”

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Não é raro ouvir André dizer que mais do que ilustrador ou escritor ele é um promotor de leitura. É comum também que ele em encontros com crianças cite outros autores ou até leia com eles diversos tipos de livros, fale sobre suas preferências, aponte caminhos. As exposições, no fim, são uma outra forma de fazer o que ele mais gosta: ler com o outro, a partir do momento que exibe a sua maneira de criar um livro e como aquele livro não termina nunca.

“É como quando você reler um livro e encontrar outras coisas que não tinha percebido. Não termina. Eu sempre penso o livro como um todo e no pensamento do livro ilustrado eu penso na leitura também de uma forma geral: não quero que as pessoas leiam melhor meu livro ilustrado para ler outros meus ou outros livros ilustradros apenas. Quero que as pessoas se desenvolvam e leiam romances, contos, que sejam adultos leitores de vários tipos de livros.”

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