Movimento negro receia que lei fique só no papel

De autoria da deputada Esther Grossi (PT-RS), a lei promulgada na última sexta-feira pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva supõe a reciclagem de professores para a reformulação da versão oficial até agora ensinada da contribuição dos negros para a civilização brasileira

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Por Agencia Estado
Atualização:

Movimentos e acadêmicos da comunidade negra que há mais de 20 anos lutam pelo resgate do papel do negro na história do Brasil aplaudem a promulgação da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas, mas receiam que ela não saia do papel. De autoria da deputada Esther Grossi (PT-RS), a lei promulgada na última sexta-feira pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva supõe a reciclagem de professores para a reformulação da versão oficial até agora ensinada da contribuição dos negros para a civilização brasileira. "Há leis análogas, estaduais e municipais, que ficaram engavetadas", afirma o advogado Hédio da Silva Jr., do Centro de Estudos de Relações do Trabalho e Desigualdades, autor de um estudo feito por encomenda da Unesco, sobre Direito e Desigualdade Racial, com ênfase na discriminação dos negros. Apesar de considerar a nova lei federal uma vitória do movimento, o advogado prevê dificuldades para sua aplicação."Espero que não se repita o que ocorreu com uma lei municipal, aprovada em 1996 na administração de Paulo Maluf, que seus sucessores Celso Pitta e Marta Suplicy não puseram em prática em São Paulo", disse Silva. O Ministério da Educação informa que sua equipe e as secretarias estaduais estão equipadas para providenciar a capacitação dos professores e distribuição de material didático, de acordo com uma visão correta sobre a participação do negro na história do Brasil. É uma resposta às críticas a um veto de Lula a um artigo do projeto original de Esther Grossi que previa uma parceria entre o movimento negro, universidades e institutos de pesquisa para a reformulação do ensino. "Acredito que esse veto não compromete, porque já existe uma colaboração entre instituições e o movimento negro", afirma a professora Raquel de Oliveira, especialista em relações raciais e educação, da Prefeitura de São Paulo. Militantes voluntários que abastecem a rede de ensino com material didático, na falta de recursos públicos, prevê a professora, deixarão de entrar pelas portas dos fundos, pois serão convocados a colaborar com as escolas. Assessora, em Brasília, do Programa Ações Alternativas do Ministério de Desenvolvimento Agrário, a professora Zélia Amador de Deus, que foi vice-reitora da Universidade Federal do Pará, acredita que, se houver resistência à aplicação da lei, será um problema contornável. "Se as escolas já acolhem os movimentos, serão capazes de formar pessoal para contar a história do Brasil de outra forma", acredita Zélia, apostando na capacidade dos militantes negros que, nos últimos anos, conseguiram abrir espaço para o debate sobre a luta contra o racismo em sindicatos, igrejas e universidades. Para Edna Roland, presidente da associação Fala Preta!, que em 2001 foi relatora da declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, promovida pela Organização das Nações Unidas, em Durban, na África do Sul, a eficácia da lei dependerá do diálogo das secretarias de Educação. "Não queremos privilégios, estamos lutando pelo reconhecimento de nosso papel na construção da sociedade brasileira", afirma a professora. Essa luta não nega a contribuição dos índios e dos migrantes europeus, mas tenta resgatar a importância dos negros na história do País. "É importante desmistificar um tipo de historiografia oficial que desconhece a existência de uma civilização africana anterior à colonização", reforça a filósofa Sueli Carneiro, presidente do Geledés - Instituto da Mulher Negra. Sua colega, a educadora e pesquisadora Eliane Cavalleiro, acredita que a lei sobre o ensino de cultura e história afro-brasileira permitirá que as novas gerações compreendam de outra maneira a diversidade racial. Visão bem diferente daquela que Ana Carolina Lima, uma moça negra que concluiu o ensino médio no ano passado, aprendeu na escola. "A gente estudava o período da escravidão e muito pouca coisa sobre o que aconteceu após a abolição", disse ela. O coordenador de História do Curso e Colégio Objetivo, Francisco Alves da Silva, adverte para o risco de a lei não pegar, por falta de capacitação dos professores. "É preciso reformular muita coisa, porque nosso currículo desconhece a África", observa o professor, criticando o enfoque dado pelos livros didáticos à História da Europa. "Nem História da América estudamos direito", denuncia. O historiador Boris Fausto, professor aposentado da Universidade de São Paulo e autor do livro História Concisa do Brasil, recebeu a nova lei como "uma contribuição salutar" para o entendimento da cultura e da história do negro. Mas acha que as secretarias de Educação deveriam ter autonomia para adaptar o currículo à sua realidade. "No Paraná, por exemplo, a colonização polonesa pode ser mais expressiva do que a presença de descendentes africanos", observa. "Uma visão correta do papel desempenhado pelos negros no País deve abranger quatro séculos de história e mostrar, por exemplo, que os escravos lutaram pela liberdade, nos quilombos, muito antes da independência", diz o professor e escritor Hélio Santos, autor de A Busca de um Caminho para o Brasil - A Trilha do Círculo Vicioso, no qual analisa as seqüelas da escravidão.

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