‘Fomos realmente abandonados’: vírus gera crise nas universidades britânicas

Sem nenhum resgate do governo à vista, as universidades britânicas, diante das dificuldades financeiras, reconvocaram os estudantes aos campi, e o resultado foi péssimo, como seria de se prever

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Por Redação
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LONDRES — Dentro de um dormitório atualmente conhecido entre os estudantes como HMP, iniciais da Prisão de Sua Majestade, o lixo se acumulava nas cozinhas coletivas. Estudantes lavavam a roupa nas pias dos banheiros. Seguranças vigiavam a entrada, impedindo a chegada ou partida de qualquer um.

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O edifício estava pronto para um surto do novo coronavírus desde a chegada dos estudantes do primeiro ano à Universidade Metropolitana de Manchester para participar da Freshers’ Week (semana dos calouros), o extravagante batismo britânico dos universitários, que inclui pubs lotados e festas nos dormitórios.

Mas, quando ocorreu o inevitável, e o vírus se espalhou pelas instalações dos alunos, a universidade praticamente os deixou entregues à própria sorte: foi imposta uma quarentena tão rigorosa que os próprios estudantes tiveram que cuidar dos colegas doentes, pais tiveram que viajar por horas para entregar comida e advogados se ofereceram para trabalhar gratuitamente no caso.

Até o momento, cerca de 90 universidades britânicas relataram casos do coronavírus. Milhares de estudantes estão confinados em seus alojamentos, alguns dividindo quartos com colegas infectados, e muitos têm dificuldade para serem testados. Temendo que os estudantes desencadeiem surtos longe do campus, o governo alertou que talvez eles tenham que ficar de quarentena antes de voltarem para casa no Natal.

A Grã-Bretanha teve alertas de sobra: semanas antes, a reabertura das universidades americanas teria feito o número de casos nos Estados Unidos aumentar à razão de 3.000 por dia, com vários estudantes mortos. Mas as universidades britânicas insistiram em reconvocar os alunos para os campi, facilitando surtos que estão alcançando as cidades ao redor. O ritmo de contágio em Manchester é agora dez vezes maior do que em agosto.

Os surtos iluminaram aspectos desagradáveis dos dez anos de campanha britânica para transformar o ensino superior em um mercado sem escrúpulos. Ao cortar o financiamento do governo e tornar as instituições dependentes das mensalidades de ensino e aluguel dos quartos, o governo as incentivou a aglomerar mais alunos nos campi.

A pandemia ameaçou acabar com essa fonte de renda. Mas o governo do primeiro-ministro Boris Johnson ofereceu uma fração do dinheiro dedicado a outros segmentos, de modo que as universidades retomaram seu funcionamento normal, independentemente dos riscos.

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Para os acadêmicos, as políticas do governo refletem não apenas sua abordagem errática e caótica para o problema do coronavírus, mas também sua antiga suspeita em relação às universidades. Ecoando ideias americanas a respeito de um suposto favorecimento aos alunos de esquerda, alguns legisladores na Grã-Bretanha acusaram as universidades de sufocar o discurso politicamente incorreto, ameaçando responder com uma intervenção.

Até o momento, cerca de 90 universidades britânicas relataram casos do coronavírus Foto: Sean Rayford/ AFP

“Há muito dinheiro sendo destinado a outras áreas da economia, mas o governo não está oferecendo nada às universidades", disse Steven Fielding, professor de história política da Universidade de Nottingham. “As pessoas relevantes dentro do governo enxergam as universidades como antagonistas, vendo inimigos em pessoas como eu.”

A situação foi agravada por um escândalo envolvendo os exames de admissão nas universidades em meados deste ano. Depois de usar inicialmente um algoritmo que rebaixou a nota de muitos estudantes, o governo as revisou e restaurou as notas mais altas.

Isso criou um fluxo de entrada inesperado nas universidades mais prestigiada, com os estudantes abandonando as vagas nas instituições menos competitivas, disse o Dr. Gavan Conlon, sócio da London Economics, firma de consultoria em economia do ensino.

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Algumas universidades perderam subitamente as matrículas e sua receita, mas muitas ficaram mais lotadas do que nunca. Isso tornou impossível nas universidades britânicas o tipo de distanciamento social no campus que as universidades americanas empregaram na tentativa de conter o vírus.

Na Universidade Metropolitana de Manchester Metropolitan, campus frequentado por 33.000 alunos, pelo menos 137 estudantes foram rapidamente infectados e 1.500 calouros tiveram que se isolar.

Recebendo pouco além de uma única máscara cada, alguns alunos do primeiro ano viram os estoques de comida se esgotando enquanto o lixo e a roupa suja se acumulavam depois que casos do coronavírus levaram ao isolamento dos dormitórios. Lucia Dorado, aluna do primeiro ano, lembra de deixar refeições e um pouco de chá no pé da porta do quarto de uma colega, e ver outros alunos seguindo em festa no pátio.

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“Fomos realmente abandonados", disse Lucia a respeito da universidade. “Eles não mobilizaram quase nenhum recurso para reverter a situação, e isso ao custo da nossa saúde física e mental.”

A universidade disse em comunicado que, pouco após a quarentena, deu aos estudantes um desconto de duas semanas no aluguel e ofereceu um vale-compras online, posteriormente ajudando a levar a eles alguns kits de testagem. Afirmou que a reabertura foi parcialmente motivada pelo fato de “o governo dar prioridade à abertura das universidades", mas, na terça feira, a maioria dos cursos foi convertida em ensino à distância para o mês de outubro, seguindo as orientações das autoridades de saúde pública de Manchester.

O Grupo de Orientação Científica para casos de Emergência do governo britânico previu essas dificuldades no dia 3 de setembro, dizendo que “é grande a probabilidade de surtos significativos” nas universidades.

Mas não houve campanha de testagem em massa nem dinheiro adicional do governo, e as universidades temeram perder alunos para a concorrência se fechassem os campi ou impusessem o formato do ensino à distância.

“O silêncio do governo tem sido ensurdecedor", disse Rob Ford, professor de política da Universidade de Manchester, “buscando essencialmente obrigar as universidades a assumirem a iniciativa".

As pressões financeiras sobre as universidades nasceram de uma reforma do ensino superior britânico comandada pelos conservadores em 2010, quando o governo cortou os subsídios e triplicou o teto das anualidades para £ 9.000, ou US$ 11.600. Posteriormente, o governo suspendeu um limite para o número de estudantes que uma universidade pode recrutar, transformando um sistema de ensino superior antes reservado às classes média e alta e criando um clima de disputa acirrada entre os estudantes.

Os aluguéis aumentaram conforme as universidades correram para construir dormitórios, frequentemente recorrendo a empréstimos: de 2012 a 2019, o valor médio do aluguel pago pelos estudantes teve alta de 31%, chegando a £ 147 (US$ 190) por semana.

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E as universidades começaram a recrutar agressivamente alunos estrangeiros ricos, especialmente da China, na tentativa de compensar o fato de o governo manter o limite das anualidades pagas pelos alunos britânicos praticamente inalterado desde 2010.

A crescente dependência em relação aos pagamentos dos estudantes deixou as universidades perigosamente expostas quando o coronavírus chegou, disse Peter Dolton, professor de economia da Universidade de Sussex. Temendo que um grande número de estudantes permanecesse em casa com o início do semestre letivo, ou que exigissem descontos nas mensalidades se as aulas fossem transferidas para o ensino à distância, quase todas as universidades reabriram.

A decisão deixou os professores desmoralizados; alguns se sentem pressionados a retomar as aulas presenciais, e outros descreveram sentir-se pouco à vontade diante de um semestre de aulas motivadas claramente por razões financeiras.

Os estudantes também dizem que essa lógica ficou totalmente clara enquanto estavam nos campi.

“Os alunos são dinheiro no bolso e, enquanto estivermos no campus, eles vão deixar para se preocupar com as consequências mais tarde", disse Aslan Warburton, aluno do primeiro ano da Universidade Metropolitana de Manchester. “A dimensão financeira tem mais importância do que o bem estar dos estudantes e o bem maior da comunidade.”

Apesar dos apelos do Partido Trabalhista, da oposição, pedindo a suspensão das aulas presenciais, a maioria das universidades britânicas resistiu à ideia de transferir toda a sua atividade de ensino para a internet. Mas, nas cidades mais atingidas, há sinais de que as universidades estariam começando a restringir o ensino em sala de aula.

E com a data-limite para reembolso se aproximando, alguns professores suspeitam que as universidades estão apenas esperando até que o dinheiro pago pelos estudantes esteja garantido para então adotar medidas de precaução mais agressivas. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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