Escolas ajustam currículos à nova Base Nacional Comum Curricular

Pela BNCC aprovada, colégios devem repensar práticas e promover competências nos alunos

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Por Guilherme Guerra
Atualização:
11 min de leitura

SÃO PAULO - Desde que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino infantil e fundamental foi aprovada em dezembro de 2017, Estados e municípios brasileiros promovem debates com a comunidade escolar para definir o currículo a ser aplicado. O desafio é transformar as competências e os campos de experiência do documento em projetos curriculares que estejam de acordo com a realidade das escolas de todo o País. Ao mesmo tempo, os colégios, em especial os particulares, acompanham o movimento e analisam se seus currículos estão dentro das exigências do documento.

Antonio e a mãe, Jeanne.Ele gosta da escola Lumiar Foto: Hélvio Romero/Estadão

A escola Lumiar, na região central de São Paulo, elaborou há 15 anos um currículo de competências que antecipou diversos elementos da atual BNCC, como a promoção do autoconhecimento e da argumentação. Hoje, a base prevê que todas as escolas do Brasil, particulares e públicas, abordem esses e outros itens. “A diferença do currículo da BNCC para o nosso é como organizamos e nomeamos esses itens”, explica a diretora da unidade de São Paulo, Fábia Apolinária. Enquanto o documento do governo tem apenas um eixo, a escola tem duas matrizes para definir o aprendizado dos seus estudantes.

Conversa

O objetivo da metodologia Lumiar, criada pelo empresário Ricardo Semler em 2003, é integrar o aluno ao processo educacional, estimulando o questionamento e a colaboração com professores e colegas. Cada um pode dar pitaco. Tanto que, às terças-feiras, alunos, professores e funcionários do colégio, como o pessoal da faxina e port aria, se reúnem para uma grande “discussão de relacionamento”.

A rodona, como a iniciativa é chamada, incentiva que um indivíduo aponte algo na rotina escolar e pense coletivamente em alguma solução. Do mesmo jeito que um professor pode propor uma atividade, um aluno pode tecer críticas. Ou, ainda, uma funcionária da limpeza pode apontar um ato de vandalismo e propor soluções com o grupo. “Esse cuidado com o outro não é só entre criança e professor”, afirma Semler. “É com todo mundo.”

Foi esse tipo de comportamento que levou Jeanne de Alencar a matricular o filho, Antonio, de 11 anos, na Lumiar. De acordo com a mãe, a escola desenvolve o protagonismo na criança, algo em que Antonio não teve oportunidade de progredir em uma escola tradicional. E migrar de uma para a outra foi uma mudança da água para o vinho.

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No atual colégio, onde completa seis anos de estudos, Antonio se acostumou à rotina sem grade horária, com o desenvolvimento de longos projetos interdisciplinares e discussões construtivas. “Houve um choque de rotinas e regras”, diz Jeanne, frisando que a Lumiar possui regras, sim, mas não como em uma escola tradicional. “Mas ele se encontrou lá e nós [OS PAIS]também, vendo a evolução dele.”

Normas

Embora particulares como a Lumiar tenham algum tipo de autonomia frente à rede pública para implementar o novo currículo e ir além do que é proposto, adiantando-se a tendências pedagógicas, a diretora executiva do Cenpec, Mônica Gardelli, explica que ainda assim elas devem estar atentas às regras da BNCC na sua respectiva região. Caso contrário, poderão enfrentar problemas ao desrespeitar as diretrizes curriculares vigentes.

“A base é uma oportunidade ímpar de tentar dar um salto na qualidade da educação”, comenta Mônica. O documento é uma chance de discutir a identidade do País e o que se espera de uma sociedade mais justa e igualitária. Mas, na sua visão, faltou dar a devida ênfase a questões de diversidade, como gênero, raça, sexualidade e desigualdade socioeconômica.

“As pessoas podem ter uma interpretação ampla e podem fazer o contrário do que pede a base”, afirma a especialista. Entre os pontos positivos, ela destaca o detalhamento que o documento oferece para que as escolas montem os currículos e monitorem o desempenho dos alunos.

Justamente graças a esses pormenores que o Colégio Dante Alighieri, na zona sul de São Paulo, repensa o seu projeto político-pedagógico para 2019. A coordenadora-geral de Pedagogia do colégio, Sandra Tonidandel, conta que, assim que a base foi aprovada, o corpo docente se reuniu, leu atentamente as novidades e fez os devidos ajustes no currículo escolar. 

“A BNCC impactou diretamente o dia a dia da nossa escola”, afirma a coordenadora. Com o documento em mãos, os professores têm os detalhes do conteúdo curricular nacional e conseguem calibrar o que está sendo aprendido pelos alunos. Chamadas de avaliações formativas e processuais, os recursos para medir desempenho são feitos com bastante frequência no período letivo para acompanhar os estudos, havendo a realização de testes, argumentações, apresentações de pitch e outros formatos possíveis.

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De acordo com Sandra, o Dante Alighieri não avalia somente por meio de uma prova no fim do bimestre, mas sim “o processo de aprendizado”. Se o aluno não aprender, é dado um retorno sobre o desempenho e pode ser até repensada a maneira como a matéria costuma ser dada. Na BNCC, esses objetivos de aprendizagem foram documentados detalhadamente por idade, série e disciplina.

No Colégio Franciscano Pio XII, na zona sul em São Paulo, a diretora adjunta, Fátima Miranda, caracteriza essas minúcias sancionadas na BNCC como uma “ressonância magnética”. Depois da análise, a conclusão foi simples: “A escola tem trabalhado muito além do que a base propõe”. O maior exemplo é como o trabalho voluntário tem uma presença forte no colégio e reúne alunos, familiares, ex-alunos e comunidade para cuidar de projetos beneficentes. “Somos uma escola católica franciscana e o trabalho voluntário se encaixa perfeitamente no DNA da instituição”, afirma Fátima.

Meta.Silvia se preocupa com exame de entrada dos filhos, Luiza e Pedro, na faculdade, mas diz que não é sua prioridade Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Desenvolvimento

Ainda que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e outras provas sejam importantes para o estudante, segundo Fátima, o Colégio Pio XII precisa estar articulada às competências da base e de uma formação humanizada. E essa estratégia conta com o respaldo dos pais. Silvia Liguori, mãe de Luiza, aluna do 1.º ano do ensino médio, e Pedro, do 8.º ano do fundamental, conta que se importa, sim, com vestibulares. “Mas não é minha preocupação principal”, diz. Muito mais do que isso, ela quer uma formação focada em valores e acolhimento.

Camila Pontes também espera uma formação humanizada do Santa Maria, colégio em que suas duas filhas, Laura, de 3 anos, e Luísa, de 7, estudam. Lá, a pequena acaba de começar o Jardim I, na educação infantil, e a mais velha cursa o 1.º ano do fundamental. As duas meninas experimentam a revolução na educação infantil, proposta pela BNCC, que enumera campos de experiência a serem desenvolvidos nessa etapa e promove o protagonismo infantil.

No novo currículo do Santa Maria, são os pequenos que decidem o que querem estudar, no lugar do conteúdo que era antigamente imposto sobre eles. E essa escolha pode surgir do mundo à volta deles, não necessariamente dos livros. Por exemplo, bastou uma volta no bosque do Santa Maria para que a última turma do Jardim I decidisse que gostaria de entender mais sobre formigas. E os insetos saíram da curiosidade lúdica e se tornaram o tema do primeiro semestre de 2018, com diversos conteúdos interdisciplinares preparados pela professora.

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“Antes tínhamos propostas didáticas pensadas pelas professoras, levando em consideração a faixa etária dos alunos”, diz a orientadora pedagógica de educação infantil no colégio, Karine Ramos. Sob o modelo antigo, na maior parte das vezes, as professoras costumavam usar sequências didáticas, como as histórias infantis de Cachinhos Dourados, para preparar o material de aula. Agora, as sequências são utilizadas após a manifestação dos alunos.

Coletividade

E isso traz benefícios. “Quando você começa a escutar essa criança revelar os interesses dela, você a traz para um lugar de protagonismo”, explica Karine. Camila aponta que, nessa fase, é normal que as crianças desenvolvam um senso de individualidade. Pensando nisso, o Santa Maria fez a sequência didática dos “carinhos quentes”. Por meio de palpites que os pequenos sugerem, o objetivo da atividade é ensinar a gentileza e o afeto ao colega. “E a Laura trouxe esse comportamento para casa”, conta Camila.

“Os pais elogiam muito esse processo, até porque eles conseguem acompanhar o aprendizado”, afirma Karine, que trabalha há 20 anos com pedagogia e documenta em relatórios o progresso dos alunos ao longo do processo educativo. E eles têm um acompanhamento mais próximo do que os pequenos têm feito. “É um projeto coparticipativo”, afirma Karine. E Camila não tem o que apontar para ser melhorado no ensino da filha: “Eu estou bem satisfeita”.

Contas.Sala do Mary Ward estimula raciocínio com uso de jogos Foto: Werther Santana/Estadão

Aprendizagem criativa antes das normas

Colégio Mary Ward aposta no lúdico para mostrar o conteúdo aos alunos

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Para ajudar no ensino da Matemática, que tal uma sala feita especialmente para pensar em soluções matemáticas criativas, com os alunos reunidos em círculo? É o que oferece a Mathemoteca do Colégio Mary Ward, na zona leste de São Paulo. O espaço junta logística com ludicidade e pode ser usado por todos os alunos do 1.º ao 5.º anos do ensino fundamental. Para cada turma, a professora propõe um problema compatível com a faixa etária, e depois os estudantes procuram uma solução. O pulo do gato está na pluralidade: há muitas formas de resolver o jogo, embora a questão seja a mesma para todos. 

“Não temos mais um processo de aprendizado mecânico”, afirma o diretor pedagógico do Mary Ward, César Marconi, que fez uma parceria com o Grupo Mathema para levar a sala ao colégio.

Para a gente, a BNCC não é um bicho de sete cabeças. O colégio já estava de olho nesse movimento de mudança

César Marconi, diretor pedagógico do Mary Ward

Outra colaboração realizada com o grupo é o Projeto Ciranda, em que o objetivo da proposta pedagógica é simples: deixar a criança ser criança. Por exemplo, a escola desconstrói a ideia de que a criança de 3 a 5 anos deva escrever com letra cursiva. E o plano ainda contempla a participação dos pais, que têm como lição de casa narrar histórias de livros infantis para desenvolver a oralidade dos filhos.

Para o diretor, é preciso refletir sobre o conteúdo e deixar que os pequenos se percebam no contexto. “Isso faz da criança o protagonista”, afirma. Não à toa, protagonismo é uma das palavras-chave para entender a nova BNCC. 

Nos últimos anos, o Mary Ward antecipou-se à base e fez mudanças na matriz curricular a fim de se modernizar. A principal novidade é a divisão de conteúdos e disciplinas antes amarrados em um único ano, agora apresentados ao longo de uma etapa. Um exemplo citado vem das aulas de Química (disciplina que, junto com Biologia e Física, se dividiu entre o ensino médio e o 9.º ano do fundamental), em que um típico cardápio de café da manhã foi usado para mostrar que componentes químicos integram a refeição. Os alunos, então, vão nomeando os elementos. “Trata-se de um pensamento científico, crítico e criativo”, diz Marconi.

Apesar da ênfase científica e acadêmica na matriz curricular da escola, entre as novidades propostas pela BNCC está o ensino religioso. Mas isso não é novo no Colégio Mary Ward, cujo nome faz homenagem a uma freira expulsa da Inglaterra no século 16. Lá, a disciplina já existia e segue na grade. Segundo o diretor pedagógico, a matéria amplia o escopo abordado pela base e é uma oportunidade para discutir com os jovens temas importantes da atualidade, como drogas e aborto.

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“Para a gente, a base não é um bicho de sete cabeças”, comenta. “O colégio já estava de olho nesse movimento em termos de mudança.” O Mary Ward usa o documento do jeito que foi pensado pelos educadores do governo: como um guia para montar o cardápio acadêmico que uma escola oferece. Mas, sob os olhos do diretor, nada ali é tão inovador assim. Para ele, a base é um “resgate social” do que a escola já vinha trabalhando. “A BNCC é exatamente o que você exige de um aluno do século 21.”

10 competências definidas na BNCC para a educação básica

A Base Nacional Comum Curricular estabelece dez competências gerais para guiar a educação básica. O documento enumera um conjunto de habilidades e práticas que o aluno deverá aprender para o exercício da cidadania, como por exemplo conhecer as tecnologias digitais, saber argumentar e cuidar da saúde física e emocional. Para a diretora executiva do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Mônica Gardelli, é preciso levar em consideração a realidade da escola antes de se aplicar essas competências. Tendo isso no horizonte, poderão ser criadas metodologias conforme as exigências da BNCC.

Conhecimento Trata-se de explicar a vida a partir de informações sobre o mundo físico, social, cultural e digital. Mônica afirma que o conhecimento não deve ser encarado como um bem adquirido, “mas como um repertório que permite que o aluno interfira na realidade”.

Pensamento científico, crítico e criativo Prevê que a curiosidade intelectual, seja estimulada por meio da metodologia das ciências, usando o teste de hipóteses, a formulação de problemas e a criação de soluções para exercitar a investigação, a criticidade e a imaginação.

Repertório cultural Esta competência valoriza as manifestações artísticas e culturais do Brasil e do mundo, bem como convida o aluno a fazer parte. “É fundamental para a interpretação do mundo”, afirma Gardelli. “Ver o mundo a partir desse repertório cultural é como ganhar óculos.”

Comunicação  Devem ser usadas as linguagens verbal, corporal, visual, sonora e digital, para permitir que o estudante saiba se expressar e interpretar códigos. Em Língua Portuguesa, exemplifica a especialista, é possível trabalhar isso com os diferentes gêneros de discurso, incluindo os de meios digitais.

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Cultura digital O objetivo é fazer com que o aluno se comunique, acesse e dissemine informações com protagonismo, reflexão e ética. Para Mônica, tem como função garantir e promover a apropriação dos recursos digitais, e ainda a reflexão sobre eles. Ou seja, esta competência não deve exigir que somente se faça uso de plataformas, mas sim que também se discuta o mundo digital.

Trabalho e projeto de vida O que se espera é que o aluno pense o mundo do trabalho e dos sonhos de maneira autônoma e responsável. “É o que dá sentido à nossa existência”, diz a especialista. E sugere que a competência seja trabalhada transdisciplinarmente, assim “todos os professores podem colaborar com o objetivo do aluno”.

Argumentação A intenção é promover com fatos, dados e informações confiáveis a argumentação, que deve contemplar a formulação de ideias, defesa de pontos de vista e o respeito a direitos humanos, consciência socioambiental e consumo responsável. Nesta competência, alerta a diretora-executiva do Cenpec, outras habilidades precisam ser bem trabalhadas com os alunos, como repertório cultural, comunicação e pensamento científico, crítico e criativo.

Autoconhecimento e autocuidado A escola deve engajar o estudante a cuidar do próprio bem-estar e da sua saúde física e mental, assim como a reconhecer o estado emocional do outro. “Tem bastante a ver com a capacidade que temos de se enxergar no mundo em que vivemos”, explica a especialista.

Empatia e cooperação Exercitam-se o diálogo e a resolução de conflitos, acolhendo a diversidade. Para Mônica, trata-se de um ponto complexo, já que não aborda a questão da ética. “Para desenvolver empatia, é preciso que você a tenha.” Sugere, então, investir na formação dos professores.

Responsabilidade e cidadania Aqui o objetivo é levar o aluno a pensar coletivamente com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. “Nos espaços escolares, isso não é grande novidade”, diz a especialista. Muito mais do que a responsabilidade consigo mesmo, esta competência deve abordar a relação com o outro. “Não é apenas entregar as coisas no horário”, justifica.

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