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A redação do Enem de 2015 foi diferente dos anos anteriores?

Especialistas dizem que  polêmica não é ruim e que tema precisa ser efetivamente debatido

Por Amilton Pinheiro
Atualização:

Em 2003, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tratava, assim como neste ano, da violência, nesse caso, da violência na sociedade brasileira. O tema era 'A violência na sociedade brasileira: como mudar as regras desse jogo'. Mas se naquele ano, o assunto era abordado de forma generalizada, o de 2015 foi 'A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira', especificando, portanto, a questão do gênero. E isso foi suficiente para criar um amplo e polêmico debate nas redes sociais entre os contrários e favoráveis.

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De acordo com Cláudia Vianna, professora-doutora nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora e líder do grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual (EdGES), a polêmica deste ano resulta, justamente, do destaque dado ao gênero, não à violência.

 “Em nossa sociedade, as diferenças entre homens e mulheres são comumente remetidas diretamente ao sexo, às características físicas tidas como naturais e imutáveis. Com base em definições essencialistas do que é ser homem e/ou mulher edifica-se um sistema de discriminação e subordinação entre os sexos”, entende Cláudia.

Estudantes esperam abertura dos portões para realização da prova do Enem deste ano Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Historicamente, os temas da redação do Enem perpassam questões sociais (ver quadro abaixo). Mas neste ano, além de abordar uma questão social, não fugindo desse perfil histórico, especificou o gênero. “A questão que trata da violência contra as mulheres na prova [de redação] ocorre em meio à resistência cada vez mais violenta de setores conservadores à inclusão de temáticas como gênero, diversidade sexual, sexo e sexualidade na educação”. Ela lembra também que desde o final dos anos 1990 o Ministério da Educação incorporou esses temas nos seus planos, programas e projetos. 

Ingerência do governo federal

Um dos pontos controversos da polêmica do tema de redação do Enem é que o Estado estaria pretendendo doutrinar os alunos ao escolher assuntos com esse teor. Na entrevista dada pelo ministro da Educação, Aloizio Mercadante, em 25 de outubro, ele também foi questionado sobre o assunto. “O ministro da Educação e ninguém do Ministério da Educação têm conhecimento do conteúdo da prova, que é feita com total sigilo. Eu só conheci o tema da redação no exato momento que ele foi divulgado para vocês (jornalistas). Até então, eu não opino,não tenho acesso, não quero ter acesso e é muito importante que se preserve o sigilo da prova”, esclareceu.

Ministro da Educação, Aloisio Mercadante, faz balanço final do Enem 2015 Foto: Andre Dusek/Estadão

O ministério da Educação disse que as provas e a redação do Enem são escolhidas por uma equipe de pesquisadores do Inep, ligado ao Ministério da Educação, com assessoria pedagógica de docentes de universidades brasileiras. “O tema abordado na edição de 2015 é um problema social. O tema contribui para uma reflexão sobre a gravidade do problema. O Inep espera que essa reflexão contribua para que o Brasil supre essa questão que tanto mal faz para a sociedade”, explicou o ministério.

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Presente no dia a dia

Ex-secretária de Educação Básica do ministério da Educação e diretora da Fundação Santa Maria, Maria do Pilar Lacerda não vê nenhuma problema com o tema de redação do Enem e frisa que assuntos como esses fazem parte da sala de aula e do cotidiano dos jovens. “Inclusive é um tema discutido em sala de aula, que faz parte da realidade de muitos jovens, que têm mães que sofrem algum tipo de violência. Não vejo nenhum problema com o tema e acho ótimo, reforço, a polêmica. O debate é sempre bom para a democracia. O que a gente não pode é descambar para censura e o preconceito”, diz.

Os candidatos do Enem caminham para uma sociedade mais justa Foto: Fabio Motta/Estadão

Cláudia Vianna explica que assuntos como esses têm que ser estimulados pois ajudam os alunos a entenderem temas complexos e de suma importância para uma convivência justa e civilizada em qualquer sociedade. “É contribuir com a reflexão de milhares de jovens sobre a discriminação e a violência escolar contra meninas, garotas e mulheres. 

TEMAS DE REDAÇÃO DO ENEM (ANOS 2000)

ANO TEMA

2015: A persistência da violência contra a mulher

2014: Publicidade infantil em questão no Brasil

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2013: Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil

2012: Movimentos imigratórios para o Brasil no século 21

2011: Viver em rede no século 21: os limites entre o público e o privado

2010: O trabalho na construção da dignidade humana

2009: O indivíduo frente à ética nacional

2008: Como preservar a floresta Amazônica: suspender imediatamente o desmatamento; dar incentivo financeiros a proprietários que deixarem de desmatar; ou aumentar a fiscalização e aplicar multas a quem desmatar

2007: O desafio de se conviver com as diferenças

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2006: O poder de transformação da leitura

2005: O trabalho infantil na sociedade brasileira

2004: Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação

2003: A violência na sociedade brasileira: como mudar as regras do jogo

2002: O direito de votar: como fazer dessa conquista um meio para promover as transformações sociais que o Brasil necessita?

2001: Desenvolvimento e preservação ambiental: como conciliar os interesses em conflito?

2000: Direitos da criança e do adolescente: como enfrentar esse desafio nacional

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ENTREVISTA: Maria do Pilar Lacerda – Ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação e diretora da Fundação Santa Maria

Maria do Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação Foto: Wanderley Pessoa/ACSMEC

“O debate é sempre bom para a democracia”

Apesar de achar o debate salutar para a democracia brasileira, Maria do Pilar Lacerda, alerta que não se pode descambar para a censura e o preconceito. E destaca que a polêmica que o tema de redação do Enem deflagrou ajuda a conhecer e entender o que pensa os setores conservadores e religiosos do País. “Mas ao mesmo tempo é bom que esse tema trouxe essas pessoas para fora do buraco.que elas se encontravam, mostrando suas posições. Por isso que é bom o debate”, entende. Segue abaixo os principais trechos da entrevista com Pilar.

Como a senhora está vendo a celeuma em torno do tema da redação do Enem deste ano?

Acho uma polêmica boa. Ela nunca é ruim. Foi muito bom ver as pessoas debatendo temas importantes para a sociedade. Acho que esse debate é mais uma vantagem que o Enem está trazendo.

O que achou do tema da redação?

Gostei muito do tema. Aliás, o tema do ano passado (“Publicidade infantil em questão no Brasil”) que era sobre a publicidade para as crianças, era tão polêmico quanto o tema sobre a violência contra a mulher. Acho que esse é o objetivo da educação básica: formar cidadãos que reflitam, que entendam a realidade que os cerca e que ao entendê-la tentem mudá-la.

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Enxerga algum problema nesse tema?

Não, de forma alguma. Inclusive é um tema discutido em sala de aula, que faz parte da realidade de muitos jovens, que têm mães que sofrem algum tipo de violência. Não vejo nenhum problema com o tema e acho ótimo, reforço, a polêmica. O debate é sempre bom para a democracia. O que a gente não pode é descambar para censura e o preconceito.

E sobre os argumentos levantados por essas pessoas contrárias ao tema, o que achou?

São assustadores, porque negam a realidade. Os conservadores estão tendo cada vez mais espaço para falarem. O que a gente tem que fazer é aprender a debater com eles.

A senhora falou que o tema do ano passado do Enem, que tratava da publicidade direcionada as crianças, era também polêmico, mas mesmo assim ele não gerou a polêmica deste ano. Podemos concluir com isso, que somos um País machista?

Sem dúvidas (risos). É só ver o que acontece com a nossa presidente, que só pelo fato de ser mulher gera preconceito. Não sou contra a oposição que fazem contra ela, o que sou contra é o tipo de argumento que usam, geralmente machista. O Brasil é um País machista, a sua própria história mostra isso.

Essa polêmica mostra que estamos vivendo uma maré conservadora?

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Pode ter certeza. Hoje os conservadores têm se colocado mais e com argumentos que são muito preocupantes. Essa discussão sobre a publicidade infantil é tão polêmica quanto, porque induzir a criança a comprar é reforçar esse nosso modelo consumista. Agora esse tema é muito aceito dentro da nossa sociedade capitalista. Então, acho que as pessoas vêem com naturalidade essa publicidade que induz o consumo das crianças. Mas ele [o tema] leva uma discussão também muito importante.

Qual discussão?

Qual é o papel da publicidade no sistema capitalista e para sociedade de consumo, que sociedade de consumo, estamos gerando e qual o impacto dela na natureza, com a quantidade de lixos que ela produz, etc. São reflexões tão importantes tanto quanto a questão da violência contra a mulher.

Parte dessa polêmica não envolve a questão do gênero?

Certamente. Quando as pessoas conservadoras, desses setores religiosos, dizem que a gente está ideologizando quando discute gênero, o tema da redação desde ano caiu nesse momento que é um momento muito fértil para esse tipo de reação.

Outra questão levantada pelo debate é o movimento feminista?

O feminismo andou um pouco, eu diria, relegado. É como se a questão da mulher tivesse acabado. Mas essa questão tem voltado com força nos últimos anos, Quando você começa a debater essas questões envolvendo a mulher, você mostra os lugares e os movimentos que a opressão contra a mulher acontece. Desde a mutilação da mulher em alguns países africanos até a discussão salarial das mulheres nos Estados Unidos. Essa violência contra a mulher pode acontecer quando o marido bate na mulher até quando uma menina é colocada de forma sensualizada num programa de televisão. O tema do ano passado do Enem faz um link com o tema desde ano, se olharmos para a questão da erotização da publicidade direcionada as meninas, que é também uma violência contra a mulher.

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E a questão da doutrinação levantada no debate?

O que acho é que não podemos ceder e ficar com medo quando os argumentos vão para esse caminho. Para mim essa é melhor orientação: não ficar com medo e nem parar de debater, porque se a gente parar de conversar sobre isso estamos cedendo a pressão conservadora. Se a gente quer de verdade um mundo diferente temos que fazer essa discussão. A violência contra a mulher é opressora. O que o Enem não pode é ceder as pressões desses setores conservadores e religiosos, e, por exemplo, colocar, no próximo ano, um tema, digamos, neutro, se é que existe um tema neutro. A gente tem que enfrentar, não da mesma maneira deles, mais enfrentar fortalecendo a democracia. Temos que argumentar para esses setores e questionar: “Provem para mim que não existe violência contra a mulher na nossa sociedade”. Estou agora muito curiosa para ver o resultado dessas redações; saber quais serão os argumentos, principalmente daqueles que acham que não existe violência contra a mulher. Com esse resultado vamos conhecer o conteúdo do debate. 

Teve a outra polêmica envolvendo a frase da escritora e intelectual Simone de Beauvoir...

A frase que Simone de Beauvoir diz que a gente não nasce mulher, a gente se torna mulher. Eu vi alguns argumentos em que as pessoas claramente não entenderam, dizendo coisas assim: “Hora, se eu nasci com vagina, evidentemente eu já sou uma mulher”. Simone de Beauvoir não está falando do biológico, do físico, ela está dizendo que para a mulher se tornar respeitada, reconhecida como tal, dependerá do processo, das suas relações humanas. O próprio desentendimento dessa frase já mostra também a nossa dificuldade de interpretar e de como o debate está raso. Hoje o debate é cheio de adjetivos e bem pouco substantivo, A gente tem que qualificar mais nosso debate, melhorando os argumentos. E é esse um dos papeis da escola, qualificar o debate.

Qual o tema de redação do Enem que a senhora gostaria de ver no próximo ano?

Eu adoraria ver a discussão da desigualdade social, da injustiça social, em relação à violência, mostrando como as coisas estão muito ligadas.

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