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Dos mestres, com carinho

Professores da Federal de Santa Maria traçam perfis de alunos mortos em tragédia na boate Kiss

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Por Redação
Atualização:

A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) suspendeu as atividades acadêmicas até sexta-feira. Dos 231 mortos no incêndio da boate Kiss, 106 eram alunos da instituição e a maioria (58) ainda estava no primeiro ano do curso. As aulas serão retomadas na próxima semana, mas professores se perguntam como terminar o semestre letivo após a tragédia que deixará carteiras vazias em várias turmas.

 

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Pedimos a docentes da área de Ciências Rurais, que perdeu 64 alunos ao todo, para falar como souberam do incidente e o que passa pela cabeça deles neste momento. Do curso de Agronomia morreram 26 estudantes; 15 graduandos de Medicina Veterinária e 15 de Tecnologia em Alimentos também estão entre as vítimas.

 

Os professores também contaram um pouco da história de alunos por quem tinham carinho especial. Eram jovens cheios de sonhos e potencial, e não apenas um nome, idade e número de matrícula. Com voz embargada, os docentes homenagearam seus estudantes. Confira:

 

Airton dos Santos Alonço, de 58 anos. Professor de Agronomia.

 

"O semestre letivo acaba no fim de fevereiro, mas como a gente vai conseguir entrar na sala agora sabendo que falta alguém ocupando um lugar? Como os alunos vão terminar as aulas olhando para as cadeiras vazias? Naquela madrugada de domingo 231 sonhos foram interrompidos, então imagine a tristeza e a comoção que tomaram conta da cidade. Porque não fomos nós, professores, ou funcionários que morreram, mas os alunos. Muitos alunos. A gente está acostumado a ver essa moçada ir embora para realizar seus sonhos, não dessa forma. E o que também nos abala é o fato de que muitos de nós temos filhos da idade desses jovens e que também vão sempre a festas na cidade. Aqui tem muitas casas noturnas e só na federal há 27 mil alunos. O que jovens fazem? Se divertem! Perdi um aluno de uma disciplina que estou dando no momento e vários de matérias que já lecionei. Quem eu não conheço era amigo de meus filhos. Ou amigo de filhos de amigos. Numa cidade pequena como Santa Maria, todo mundo se conhece."

 

"O Victor Datria Macagnan era especial para mim por seu meu orientando de iniciação científica. Era um jovem igual a todos os outros. Cheio de expectativas e sonho de resolver os problemas do mundo. Era extremamente dedicado ao trabalho de pesquisa sobre máquinas agrícolas. Queria ser alguém, vencer na vida através do estudo. Ele tinha 19 anos e estava no 2.º semestre. Nasceu em Cruz Alta, a 90 quilômetros daqui, na terra de Érico Veríssimo."

 

Alessandro Porporatti Arbage, de 45 anos. Professor de Agronomia.

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"Moro perto do hospital e ouvi muito barulho de ambulância na madrugada de sábado para domingo. Era um movimento anormal. Imaginei que tivesse acontecido algo importante, mas não tinha dimensão do que estava acontecendo. Logo que acordei, às 8 horas, ouvi a notícia de que havia cerca de 90 pessoas mortas na boate que meus filhos frequentam. Consegui falar com eles e vi que estavam bem. Mas não há como dimensionar a perda de aproximadamente 100 jovens. De alguma maneira, nós, como professores, encaramos os alunos um pouco como nossos filhos. E quem é pai sabe o que significa o que isso quer dizer. Não tenho condições de seguir dando aulas agora. Já mandei e-mail para a turma dizendo que o semestre está encerrado. Quem tem número de faltas dentro do permitido e nota mínima para aprovação está passado."

 

"Quando vi a lista de vítimas reparei em um nome que não me parecia estranho, o do Bruno Kraulich. Joguei o nome dele no Google e, quando apareceu a foto, lembrei na hora que tinha conversado com ele tempos atrás. Como minha disciplina é mais ligada a economia, uma ciência social, a gente acaba conversando com os alunos além das questões técnicas, o que facilita a aproximação dos meninos. E o Bruno e eu conversamos sobre a possibilidade de ele fazer um curso fora do País. Dei apoio, disse que aquilo seria um bom aprendizado. Nem sei se ele foi. Agora estava fazendo mestrado na federal, não sei em que área, e tinha uns 27 anos."

 

Eliane Maria Zanchet, de 45 anos. Professora de Medicina Veterinária.

 

"Hoje acordei com enxaqueca. Passei o domingo acompanhando o desespero das pessoas e dormi tarde. Foi muito triste o que aconteceu. Moro a duas quadras da boate. Assim que soube do incêndio procurei uma aluna que mora no andar de cima do meu prédio, a Alessandra Bridi. Pensei que ela pudesse ter ido para a festa. Encontrei a tia dela, que disse que a Alessandra não tinha ido para a boate mas estava atrás de umas amigas que foram. Eram colegas de outros semestres e que trabalhavam na empresa júnior do curso. Alessandra e algumas colegas varreram todos os hospitais da cidade à procura das amigas. Três morreram. Perdi quatro ex-alunos e a Helena, que era minha aluna neste semestre. Fui ao velório do namorado dela, o Ângelo. Os pais estão inconformados. O que vai ser do futuro? Não tem como predizer. O que sabemos é que a turma do segundo semestre, por exemplo, sempre terá cinco alunos a menos na sala."

 

"A Helena Poletto Dambros, do 6.º semestre, era uma menina querida. Prestava atenção às aulas, fazias as provas direitinho e namorava o Ângelo, que também morreu na boate. O Ângelo tinha 21 anos. Fui ao velório dele hoje. A gente tenta compreender o que aconteceu e dizer para as pessoas terem fé, coragem. Não sou mãe, mas quem perde um filho diz que é muito doloroso."

 

Neila Sílvia Pereira dos Santos Richards, de 47 anos. Professora do curso superior em Tecnologia de Alimentos.

 

"Por ser um curso novo, ainda com poucos professores e alunos, temos muito contato com os estudantes. Normalmente damos várias disciplinas e às vezes encontramos os alunos três, quatro vezes por semana. Conversávamos muito sobre projetos. A maioria já fazia iniciação científica ou auxiliava mestrandos e doutorandos na pesquisa. É muito doído o que está acontecendo. Soube do incêndio logo que acordei e meu telefonou por volta de 7 horas. Era uma aluna que não conseguia localizar um colega dela, meu bolsista de iniciação. Comecei a telefonar e meus dois bolsistas estavam em segurança. Um não tinha ido para a boate e outro tinha saído mais cedo da festa. Até 1 hora da manhã ficamos bem envolvidos no Facebook levantando informações sobre os alunos. Cada um que vinha falar comigo me deixava mais confortada. É muito triste pensar que 15 estudantes morreram. Saber que vou entrar na sala e eles não vão mais estar lá. Quase todos que morreram eram do 1.º ano, tinham no máximo 21 anos. Eram jovens que entraram com toda a garra no curso e estavam gostando. Era uma turminha muito seleta, muito boa, interessada e comprometida."

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"A Carolina Simões Corte Real, aluna do 2.º semestre, era muito batalhadora, decidida e educada. Ela sabia o que queria e acabou entrando para a pesquisa mesmo tendo vários outros alunos mais adiantados no curso interessados. Ela nos conquistou com seu jeitinho e se dedicava ao máximo. Era uma pessoa muito iluminada, que já tinha planos de fazer mestrado e doutorado e virar pesquisadora. Era tradicionalista: gostava de música gaúcha e estava sempre muito alegre. Feliz por viver e por fazer aquilo que gostava."

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