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Das arcadas para as aulas online

Com quase 200 anos, Faculdade de Direito do Largo São Francisco se esforça para superar resistências e organizar atividades remotas durante a pandemia. Professores com mais de 70 anos enfrentam desafio de lecionar para "quadradinhos na tela"

Foto do author Renata Cafardo
Por Renata Cafardo
Atualização:

A tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco modernizou-se quase que à força por causa da pandemia do coronavírus. Professores que ensinam há mais de 30 anos, com microfone na mão, em grandes salas cobertas de madeira do chão ao teto, foram para trás dos computadores. Não sem penar com as peculiaridades do mundo virtual, em que se leciona para quadradinhos na tela. Alunos se dizem até surpresos com a rapidez que o processo de educação online tomou conta da instituição, mas sentem falta do ambiente da mais conceituada faculdade de Direito do País.

Cerca de 90% dos cerca de 100 professores da São Francisco estão fazendo atividades remotas Foto: NILTON FUKUDA/ESTADÃO

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Passados dois meses do início da quarentena em São Paulo, cerca de 90% dos cerca de 100 professores da São Francisco estão fazendo atividades remotas. Poucos resistem, com o argumento de precarização do ensino. 

Na pós-graduação, foram realizadas virtualmente 124 bancas de mestrado ou doutorado nesse período. Deu tão certo que já se pensa em manter a distância a participação de examinadores de fora de São Paulo, até depois da quarentena. “Com quase 200 anos, estamos sendo obrigados a acelerar um processo que é inevitável e irreversível”, diz o diretor da faculdade, Floriano de Azevedo Marques.

A São Francisco foi fundada em 1827 por d. Pedro I como uma das primeiras instituições de ensino superior do País. Só depois foi anexada à Universidade de São Paulo (USP), que surgiu em 1934. Pelas “Arcadas”, como seu espaço no centro da capital paulista ficou conhecido, passaram presidentes das República e figuras como José de Alencar, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco.

Neste mês, alunos fizeram um abaixo assinado pedindo aulas a distância para o pequeno grupo de professores que não aceita a modalidade. Em resposta, eles disseram, por meio de nota, que era impossível “a conversão, na metade do caminho e em um contexto de pandemia, de um curso pensado para ser presencial em um curso virtual”. “É inconcebível que, sem o tempo necessário para uma preparação adequada, se dê continuidade às aulas, ministrando um conteúdo programático que, inclusive, passa a estar alheio à realidade atual”, diz a carta do grupo, que inclui cinco professores do departamento de Direito do Trabalho.

“O mundo jurídico tem resistências naturais ao que é novo”, diz De Lucca Foto: Arquivo Pessoal

No curso de Direito da Universidade Estadual Paulista (Unesp), por exemplo, apenas 20% das aulas foram autorizadas pela congregação para serem dadas online. O argumento, mais uma vez, é a qualidade do ensino e uma eventual exclusão de estudantes com dificuldades de acesso à internet. A São Francisco comprou e deu aos alunos carentes 300 chips de internet e anunciou a aquisição de laptops que serão emprestados aos que precisarem.

“O mundo jurídico tem resistências naturais ao que é novo”, diz o desembargador do Tribunal Regional Federal e professor da faculdade Newton De Lucca. Aos 72 anos, ele diz que não compartilha dessa ideia e, com o cancelamento das aulas, pediu ajuda a sua assistente para continuar lecionando. Ela o apresentou para o Google Meets e explicou que não poderia falar muito perto da câmera do computador. “Peguei um livro de 1200 páginas, um tijolão, e coloquei embaixo do computador. Parece que está dando certo”, conta De Lucca, que dá suas aulas vestindo abrigo esportivo. São 70 alunos semanalmente que assistem o professor de Campos de Jordão, onde está isolado com a mulher.

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“A parte boa é que não preciso colocar terno e gravata, tradição na faculdade”, brinca. “Mas claro que não é a mesma coisa. Minha maneira de lecionar varia bastante com o grau de interesse que vejo na plateia. Quando estão interessados, você percebe pelos olhinhos deles, dá mais entusiasmo para o professor falar”.

Em geral, os estudantes não ligam as câmeras durante as aulas virtuais – o que causa estranhamento a alguns professores. E também deixam o microfone desligado para não causar ruído. “Se a gente fica só na aula expositiva, sem interagir, corre o risco de ter alunos fantasmas”, já percebeu a professora Mara Regina de Oliveira, de 56 anos, que dá aulas de Introdução ao Estudo do Direito para o primeiro ano do curso. Ela conta que tinha uma ideia negativa da educação a distância e que achou, no início, que os alunos não estavam aprendendo nada. Mas agora criou novas estratégias.

Mara resolveu gravar e por no Youtube algumas aulas mais teóricas e deixar a interação ao vivo para discussões. A professora, no entanto, ficou preocupada quando descobriu só depois da segunda aula que as gravações desses momentos ao vivo estavam ficando com um estudante e não com ela. “Embora já usasse grupos fechados do Facebook para interagir com os alunos, confesso que nunca tinha visto esse tipo de tecnologia”, diz, ao falar das ferramentas de conferências em vídeo. Ela precisou de ajuda de um funcionário da faculdade para passar a ter a posse das suas aulas.

“Nunca imaginei que fosse dar aulas sem ver o rosto dos meus alunos”, lamenta o professor João Alberto Del Nero, de 67 anos, mais de 20 na São Francisco. Ele brinca que é da “turma do pergaminho” e que passou duas semanas aprendendo a mexer no Power Point e em outros programas para ajudar em aulas remotas.

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Del Nero decidiu então que iria gravar suas aulas, com slides explicativos, e mandar aos 180 alunos que tem neste semestre, em duas disciplinas. “Eu não me arrisco a fazer aulas ao vivo, tenho medo de me perder com 60 quadrinhos na minha frente, confesso minha incapacidade.” Ele conta que também não passou seu email aos alunos porque não conseguiria responder se todos quisessem mandar dúvidas. “Tenho feito o melhor que posso para compartilhar com eles algum conhecimento.”

Agora Del Nero e Mara estão às voltas com a definição de como farão a avaliação, obrigatória na faculdade no fim do semestre. A professora pensou em prova oral, mas achou que os estudantes não iam gostar. “Eles têm acesso a tudo, a colegas, inclusive, pelo WhatsApp. Se der uma prova básica vão copiar uns dos outros, uma difícil, ninguém consegue”, diz ela.

A faculdade está montando tutoriais com as opções de metodologia e os critérios para as provas. A ideia é que tenham tempo determinado, com perguntas discursivas e não testes, que meçam a capacidade de raciocínio. Também há a indicação de que cada professor faça, numa mesma turma, exames com perguntas diferentes.

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O professor titular de Direito Financeiro Fernando Facury Scaff, há 30 anos lecionando, encarou com facilidade a prova online que já fez no meio do curso. “Passei um problema para eles resolverem, podiam fazer a consulta que quiserem, Google, livros, o importante é argumentação, as escolhas”, diz. “Claro que, mesmo no presencial, tem sempre os alunos que dormem e os que prestam atenção. Mas as perguntas feitas nos chats mostram que eles estão querendo aprender. A faculdade está ativa, está funcionando.”

"Difícil até me sentir parte da faculdade, tive duas semanas e meia de aulas e acabou", diz caloura

A caloura Jade Souza, de 20 anos, está frustrada. Estudou durante dois anos para passar na Fuvest e se tornar aluna da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. “Não cheguei nem a decorar o caminho pra lá, não conheço a maioria dos meus colegas, professores, veteranos”, conta. Jade é de Guaratinguetá e havia se mudado para São Paulo para estudar Direito. Com a quarentena, está de volta para chácara dos pais no interior do Estado. “Difícil até me sentir parte da faculdade, daquele prédio imponente. Tive duas semanas e meia de aulas e acabou.”

'Não conheço a maioria dos meus colegas, professores, veteranos', lamenta Jade Foto: Arquivo Pessoal

A aluna teve ainda dificuldades com a internet para fazer as atividades online porque onde mora o sinal é instável. “Só na semana passada consegui ver a imagem da aula e usar o microfone.” Sua frustração se estende aos rituais pelos quais passam os calouros, ela menciona com tristeza as festas de recepção que não aconteceram e a vontade de participar de projetos de extensão.

Há meses sem sair de casa, Jade ainda se sente abalada psicologicamente com a pandemia e acha que não consegue render tanto ao estudar para o novo curso, sozinha em casa. Está preocupada como serão as provas do fim do semestre. “Só falamos com os professores por chat, eles não sabem nossos nomes. E acho que isso não vai melhorar tão cedo, sinto como um ano perdido.”

Giovana Bosso, de 21 anos, diz ter se adaptado bem Foto: FELIPE RAU/ESTADAO

Sua colega do terceiro ano Giovana Bosso, de 21 anos, diz ter se adaptado bem, apesar de sentir falta dos amigos da faculdade. Ela acha que ganhou tempo em não precisar ir até o prédio da São Francisco todos os dias e elogia o esforço dos professores, principalmente dos mais antigos, em dar aulas online. Mas também acha que a quantidade de atividades está além do que era dado presencialmente. “Os professores estão um pouco preocupados que não estejamos rendendo em casa e estão passando o triplo de coisas, trabalho, atividades. Passo o dia no computador.”

“Acho que tem muita gente que entra na aula, coloca o fone e volta a dormir”, diz o aluno do 3º ano Marcos Leal de Moraes Santana, de 20 anos. Para ele, são muitas as distrações enquanto acompanha aulas de casa. “É só abrir uma abinha ao lado para ver outro site e continuar ouvindo o professor”, concorda Giovana.

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Para eles, no entanto, a faculdade vai se modernizar após a pandemia. “As coisas lá são muito lentas, burocráticas, mas agora os professores estão explorando as plataformas, pedindo para entregar trabalhos eletronicamente, algo que não era usado”, diz Marcos. “Essas coisas não vão ser esquecidas.”