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Cursinhos comunitários mudam a cara do 3.º Grau

Estudantes carentes chegam ao ensino superior e temperam o ambiente dominado pela classe média

Por Agencia Estado
Atualização:

A universitária Juliana Santino, de 19 anos, do 6.º período do curso de Nutrição da Universidade do Rio de Janeiro (UniRio), não gostou quando uma professora disse que a alta incidência de obesidade feminina em comunidades populares se devia à "ociosidade". "Moro em uma comunidade de baixa renda e as minhas vizinhas, pelo menos, são muito trabalhadoras; não vejo ociosidade nenhuma." A professora surpreendeu-se quando Juliana disse que morava na Favela da Maré. A grande maioria dos estudantes de Nutrição na UniRio, uma universidade pública federal, vem da classe média alta e boa parte mora na zona sul, a área mais rica do Rio. Juliana é uma das centenas de pessoas de baixa renda que vêm, nos últimos anos, quebrando uma das barreiras mais básicas da desigualdade social brasileira: o acesso à universidade. Ela trilhou o caminho árduo dos cursos pré-vestibulares em favelas e comunidades populares, nos quais milhares de jovens pobres já empenharam energia para tentar chegar ao 3.º grau - comprovadamente, a forma mais segura e comum de ascensão social no Brasil. O ganho extra de renda que um brasileiro obtém, em média, por fazer quatro anos do 3.º grau é dez vezes maior do que o obtido nos quatro anos que fecham o ensino fundamental. O acesso ao 3.º grau, porém, continua a ser um privilégio dos mais ricos. Em 2001, entre os 50% mais pobres da população, só 8% dos jovens em idade de freqüentar a universidade estavam no 3.º grau. Entre os 10% mais ricos, esse número salta para 37%. E na universidade pública 75% das vagas estão nas mãos de alunos provenientes do grupo dos 30% mais ricos. Exclusão e combate "A universidade pública não pode ser chamada de pública porque é excludente, muita gente fica de fora", diz Juliana. Frases como essa são comuns entre estudantes, professores e coordenadores do movimento de pré-vestibulares em comunidades populares. Para a pequena - mas combativa - parcela da população carente que começa a perceber a importância do 3.º grau, o problema da universidade parece se resumir a uma palavra: acesso. Os cursos pré-vestibulares para comunidades pobres obviamente não resolverão um problema de natureza estrutural como a elitização do 3.º grau. Por outro lado, as levas de estudantes de baixa renda que começam a ingressar nas universidades podem se tornar aliadas dos professores e alunos que querem mudar a agenda tradicional dos sindicatos, que consideram corporativa e com pouco ou nenhum efeito prático sobre o problema de expansão do acesso. Engajados Muitos dos pobres que estão entrando nas universidades graças ao chamado "pré-vestibular comunitário" continuam engajados no movimento. "O ´pré´ comunitário coloca a pessoa na universidade não apenas para estar lá, mas também para lutar pela igualdade", diz Douglas Pego, de 20 anos, aluno e coordenador do pré-vestibular da Favela de Jacarezinho, no Rio. Desde 1975 há registro de cursos para viabilizar o acesso de negros e pobres às universidades, mas foi nos anos 90 que o movimento ganhou força. Em 1993 e 1994, surgiram e se fortaleceram duas das principais organizações no Rio, o Pré-Vestibular para Negros e Carentes e o Educafro. O componente racial no movimento é forte e existem muitos defensores de cotas sociais e raciais, embora, especialmente no segundo caso, ainda haja muita polêmica. Hoje, o Brasil tem cerca de 500 pré-vestibulares comunitários, com o Rio na frente, seguido por São Paulo. Criatividade e energia A rotina dos alunos dos pré-vestibulares comunitários envolve criatividade e energia para conciliar estudo, trabalho e as dificuldades típicas das pessoas mais pobres. "Os alunos chegam cansados, com sono, têm problemas em casa, no emprego, às vezes têm de fugir do trabalho para vir para a aula", diz Orlando Araújo, professor de matemática do pré-vestibular do Jacarezinho. Mas ele considera o que faz gratificante justamente por isso: "Aqui, ele estão brigando por esta oportunidade." Quando chegam às universidades, públicas e privadas, os pobres deparam com um mundo que não foi projetado para eles e no qual muitas vezes têm de se impor. Desculpas Jocelene Ignacio, formada em Serviço Social pela PUC-Rio (uma das universidades privadas com o maior programa de concessão de bolsas integrais para alunos de baixa renda), lembra-se de quando uma professora usou a expressão "igual a uma neguinha abusada debaixo da linha do trem" para se referir à forma mal-educada com que foi tratada por um paciente. Jocelene estrilou, brigou e a professora acabou pedindo desculpas. Os problemas dos alunos oriundos de pré-vestibulares comunitários eram muitos, ela se recorda. Um dos principais era que os preços da alimentação, do material escolar e até das fotocópias eram calibrados para os jovens abastados da zona sul. "Tive uma colega que chegou a desmaiar de fome." Ela se recorda de outra briga, com um estudante que resolveu fazer piadinhas sobre o grande consumo de biscoitos pelo grupo de baixa renda: "Era o mais barato para comer", diz Jocelene. E acrescenta: "O pré-vestibular vai além de inserir o aluno na universidade. Ele prepara a gente também para os conflitos, que certamente acontecerão, e para mostrar para as pessoas que a gente está lá não por favor, mas por uma questão de direito."

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