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Crise na Capes ameaça qualidade da pesquisa e divisão de verbas para pós-graduação

Baixo orçamento e atraso na avaliação de mestrados e doutorados prejudicam órgão

Por Julia Marques
Atualização:

Poucas semanas após os pedidos de exoneração de servidores do órgão responsável pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), novas renúncias voltaram a colocar sob holofotes a gestão federal da Educação. Dessa vez, o foco se voltou para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Cento e quatorze pesquisadores convocados para trabalhos na Capes deixaram suas funções nos últimos dias, após divulgarem críticas à atual gestão da fundação e relatarem entraves às atividades. Sem precedentes, as renúncias são a ponta do iceberg de uma crise que se aprofundou nos últimos anos e tem consequências em todo o ensino superior e na pesquisa científica brasileira.

Tarefas da Capes como a avaliação periódica dos cursos de mestrado e doutorado e até a elaboração de um plano para a pós-graduação na próxima década estão atrasadas. Ao mesmo tempo, cortes no orçamento da fundação prejudicaram o pagamento de bolsas a estudantes de licenciatura. A falta de verbas cria ainda entraves ao reajuste dos pagamentos de mestrandos e doutorandos, congelados há oito anos. 

Fachada do edifício da Capes; crise na Capes ameaça qualidade da pesquisa e divisão de verbas para pós-graduação Foto: Dida Sampaio/Estadão

Dependem da Capes a garantia de qualidade dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) no Brasil e a distribuição de bolsas para esses pesquisadores, que são o motor da ciência brasileira. Também é função do órgão distribuir verbas para programas de pós. E até mesmo vagas na graduação sofrem impacto das tarefas desempenhadas na Capes.

Fundada em 1951, a Capes é ligada ao Ministério da Educação. Ao longo dos anos, consolidou, com participação da comunidade científica, um sistema de fomento a cursos de pós considerado referência para alavancar a pesquisa. O modelo de regulação evita que novos mestres e doutores sejam formados em programas que ainda precisam se estruturar. 

A avaliação resulta em notas para cursos de mestrado e doutorado, em escala de 1 a 7. Quanto mais alta a nota, melhor é o curso. Programas muito bem avaliados recebem mais verba para que possam aprimorar ainda mais e melhorar a pesquisa brasileira. Recursos também podem ser aplicados em cursos com notas baixas para alavancá-los. A nota é importante ainda para que alunos saibam pontos fortes e fracos de seus programas e possam escolher onde fazer um mestrado e doutorado.

Quando um curso de mestrado tem nota abaixo de 3, deixa de funcionar. O mesmo ocorre com doutorados com nota abaixo de 4. Universidades privadas têm interesse em evitar o fechamento de seus cursos de pós porque podem ser rebaixadas e perder autonomia se não tiverem pelo menos dois doutorados e quatro mestrados. E, sem autonomia, perdem dinheiro: não conseguem abrir novas vagas até mesmo na graduação.

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Sob sigilo

Esse trabalho de avaliação da Capes, feito a cada quatro anos, entrou no centro de uma polêmica ainda sem solução. A avaliação relativa aos anos de 2017 a 2020 deveria ter sido concluída este ano, mas atrasou e só deve terminar em meados do ano que vem. A pandemia e mudanças na gestão da Capes – só no governo Bolsonaro, foram três presidentes – atrapalharam o processo. Em setembro, uma liminar da Justiça suspendeu a avaliação após uma ação do Ministério Público Federal (MPF) questionar a forma de aplicação de critérios.

Pesquisadores que renunciaram nas últimas semanas disseram não ver mobilização da atual presidente da Capes, Claudia Queda de Toledo, para retomar a avaliação. Eles são professores de universidades de ponta convocados em mandato de quatro anos para compor comissões de avaliação em cada área do conhecimento. De 49 grupos, quatro ficaram vazios e novos cientistas terão de ser nomeados.

Pesquisadores que renunciaram nas últimas semanas disseram não ver mobilização da atual presidente da Capes, Claudia Queda de Toledo, para retomar a avaliação Foto: MEC

“Não vimos da Capes postura taxativa em defesa da avaliação, que, sabemos, é algo importantíssimo”, diz Roberto Imbuzeiro, pesquisador do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa). Ele e outros 30 pesquisadores deixaram a comissão de avaliação dos cursos na área de Matemática. O grupo critica o fato de a Capes ter demorado a ir à Justiça para derrubar a liminar. A decisão foi parcialmente revertida no início do mês, logo após as renúncias nas comissões de Matemática, Física e Química.

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Comemorada pela Capes, a nova liminar, no entanto, ainda trava a divulgação dos resultados das avaliações. Isso, na prática, significa que os trabalhos dos cientistas podem até continuar – mas as notas devem ficar sob sigilo. Pesquisadores e entidades dizem que a situação cria insegurança. Soma-se a isso a incerteza sobre a extensão dos mandatos de cientistas que permanecem na Capes, para que possam concluir o trabalho iniciado há quatro anos. Após decisão da Justiça de manter notas em segredo, mais cientistas resolveram deixar o trabalho. A última debandada atingiu a Engenharia. 

“Fazer uma avaliação que mobiliza milhões de reais, milhares de consultores, todas as áreas do conhecimento e depois não divulgar as notas não faz sentido”, diz o pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Paulo dos Santos, coordenador de uma das áreas de avaliação na Capes. Após a debandada, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) pediu que a corte investigue a crise na Capes. E a Comissão de Educação do Senado aprovou audiência sobre o tema.

Sem resultados da avaliação, são usadas notas antigas, de 2017, para nortear a distribuição de bolsas e verbas – com isso, corre-se o risco de premiar grupos que pioraram ou deixar de dar recursos aos que mais merecem. E nem instituições nem estudantes poderão saber se seus cursos melhoraram ao longo dos anos. “Sem avaliação, não tem qualidade da pós, que é onde se faz pesquisa científica no Brasil”, diz Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-diretor de avaliação da Capes. 

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“A avaliação da Capes foi a principal protagonista do fortalecimento da Ciência, Tecnologia e Inovação no País, em todas as áreas do conhecimento”, afirmam a SBPC, a Academia Brasileira de Ciências e outras três entidades, em carta divulgada esta semana. O grupo também vê risco no sigilo. 

A Capes nega falta de empenho para retomar a avaliação e informou que o atraso ocorreu “por força de decisão judicial”. Disse, ainda, que o calendário está sendo reajustado. Indagada se pretendia brigar na Justiça para reverter o sigilo dos resultados, a presidente da Capes disse que a fundação não está brigando na Justiça, “mas apenas esclarecendo procedimentos e prestando informações necessárias” e que a intenção é ter autorização para a divulgação dos resultados. Também afirma que a prorrogação de mandatos dos pesquisadores vai considerar o novo cronograma, “em respeito à legalidade e à segurança jurídica”. 

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Novos cursos

Apesar de a Capes não saber quando terá notas da avaliação dos programas que já existem, decidiu abrir a chamada para novos cursos – esse foi outro motivo de agravamento da crise com pesquisadores. O anúncio foi feito por Cláudia em evento com donos de faculdades privadas. 

O problema, segundo cientistas, é que até mesmo a abertura de novos cursos de pós deveria se nortear pelos resultados dos que já existem: se uma universidade quer abrir um novo mestrado, é desejável que esse curso seja pelo menos parecido, em relação à qualificação dos professores, por exemplo, com os que já existem na mesma área. Uma vez que as notas estão defasadas, essa comparação ficaria prejudicada. Cientistas também dizem haver pressão em prol de novos cursos a distância.

A presidente da Capes, que foi reitora do Centro Universitário de Bauru, justifica a abertura de novos cursos pelo risco de que instituições percam o status. “Várias universidades estão sendo descredenciadas porque não atendem ao requisito legal de terem quatro cursos de mestrado e dois de doutorado. Isso não é justo.” A fundação nega que interesses privados estejam norteando esses trabalhos e diz que novos cursos são oportunidade de fortalecimento da pós. 

“Ninguém é contrário à expansão do sistema, mas tem de ser planejada”, diz Carlos Henrique de Carvalho, presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-graduação, grupo que reúne mais de 200 instituições de ensino e de pesquisa. Ele também questiona o atraso para começar um planejamento que vai nortear ações na pós pelos próximos dez anos. Sobre isso, a Capes diz que o plano começará a ser elaborado assim que o relatório do anterior for aprovado, ainda este ano.

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Sem reajuste

Enquanto aumentam as inseguranças sobre a avaliação dos cursos de mestrado e doutorado, a pós-graduação no Brasil está à míngua. Mestrandos e doutorandos não têm reajuste em bolsas desde 2013, o que leva à perda de 60% no poder de compra. Um mestrando recebe hoje R$ 1,5 mil por mês – pouco mais de um salário mínimo – e um doutorando, R$ 2,2 mil. Os baixos valores são apontados como motivo para a fuga de cérebros. 

A Capes diz que o reajuste demandaria crescimento de quase R$ 2 bilhões no orçamento. “O reajuste das bolsas é necessário”, afirma a presidente, Cláudia Queda de Toledo. “Contudo, isso não depende apenas da Capes, mas sobretudo de disponibilidade orçamentária.”  Neste ano, estudantes de licenciatura que recebiam bolsas de R$ 400 pagas pela Capes para realizar projetos em escolas tiveram repasses mensais atrasados por falta de verbas. Parte dos alunos teve de desistir das atividades para buscar emprego em outras áreas. Os pagamentos só puderam ser retomados após aprovação de projeto de lei no Congresso. 

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