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Opinião|Crianças pequenas têm uma espécie de antena que capta o sofrimento dos adultos

Os pequenos mantêm um vínculo muito intenso com os mais velhos que o cercam e percebem facilmente se há algo que preocupa essas pessoas; é preciso estar atento aos sinais de problemas psíquicos

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Atualização:

“Por que criança sofre se cuidamos dela, protegemos, alimentamos e damos tudo o que ela precisa?” Foi essa pergunta, curta e direta, que recebi na mensagem de uma mãe preocupada com o estado emocional da filha de pouco mais de 3 anos. O pediatra disse que a menina apresenta sinais de sério sofrimento psíquico.

A pandemia e o isolamento social formam a “tempestade perfeita” para o aumento de casos de depressão Foto: Marcos Müller/Estadão

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Bem, essa pergunta é um convite para conversamos sobre esse tema já que é grande o número de adultos que convive com crianças. Primeiramente, o bebê, após o nascimento, sofre. Mesmo sendo muito bem cuidado. É que, em uma gestação regular, ele estava em um ambiente superprotegido, com a temperatura adequada e luminosidade e ruídos que só promoviam o seu bem-estar – a batida do coração da mãe, por exemplo. Após o nascimento, ele perde esse ambiente seguro e entra em outro com luzes, barulhos, sente fome, calor, frio, tem cólicas etc.

É por isso que o bebê chora, aparentemente sem motivo. Ele sente falta daquela segurança. Mas é bom saber que esse sofrimento passa com a adaptação e não deixa marcas que prejudicam o seu desenvolvimento. 

Vamos pensar agora em alguns motivos que fazem uma criança pequena sofrer. Uma das sustentações da vida infantil é o vínculo afetivo que tem com os pais e/ou outros adultos que convivem amorosamente com ela e cuidam dela. Esse vínculo é tão intenso que leva a criança a facilmente perceber se há algo que preocupa essas pessoas.

Pois as preocupações, receios, dores e sofrimentos, decepções, tristezas, por exemplo, que acometem esses adultos, fazem a criança sofrer. Nem é preciso haver grandes demonstrações por parte do adulto desse sofrimento. A criança pequena tem como se fosse uma antena que capta os sinais mais sutis de mudanças e isso a faz sentir o sofrimento que ela nem entende. 

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Na atualidade, com a pandemia e o grande número de mortos, quase a totalidade dos adultos está em luto ou preocupada. E isso afeta até a criança: ela sente o estado de insegurança e tristeza por identificação com os adultos que a cercam.

Até os 3 anos, mais ou menos, quase todos os cuidados com a criança se concentram na saúde física. O pediatra, as vacinas, a amamentação, o sono, o desenvolvimento corporal etc. Quando acontece de a criança adoecer, os tratamentos são focados na doença física. Poucos profissionais têm preparo e cuidado em observar sinais da saúde mental da criança nessa idade. Mas seria preciso e precioso que houvesse esse tipo de atenção porque, desse modo, muitos quadros sérios poderiam ser evitados mais tarde. 

Que sinais podem apontar sofrimento psíquico na criança? A organização corporal, o tipo de aconchego físico e de comunicação que a criança tem com o adulto, o choro e as vocalizações e o olhar são alguns exemplos. 

No contexto atual, tristezas, choro sem motivo aparente, perturbação do sono e da alimentação, irritação frequente e inibição fazem parte do quadro de estresse pela falta da escola e pela pandemia. Mesmo assim, merecem atenção dos responsáveis.

Rosely Sayão é psicóloga e colunista do 'Estadão' Foto: Valeria Gonçalves/ Estadão

Por último, preciso lembrar do que é chamado de medicalização da infância e da vida. Trata-se de usar o raciocínio médico para avaliar tudo. É muito grande, hoje, o número de crianças que tomam remédios. Isso acontece porque o intenso desenvolvimento das ciências médicas, da indústria farmacêutica, da tecnologia e a concentração no corpo nos faz pensar sempre na biologia como estruturação da saúde e da doença. Mas a saúde mental nem sempre precisa ser medicada para ser restabelecida e seu cuidado nem sempre é simples e rápido.

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Sim, viver supõe sofrer, mas nem todo sofrimento é inútil e desastroso ao extremo. Assim é para todos nós: adultos e crianças. 

*É PSICÓLOGA, CONSULTORA EDUCACIONAL E AUTORA DO LIVRO EDUCAÇÃO SEM BLÁ-BLÁ-BLA

Opinião por Rosely Sayão
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