Cotas, um remédio que é veneno

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Por Agencia Estado
Atualização:

José Roberto Pinto de Góes * O governo desistiu de instituir, por meio de uma medida provisória, cotas raciais no ensino superior e resolveu enviar um projeto de lei ao Congresso. Fez bem. O que está em jogo é muito importante para ser decidido, exclusivamente, por "movimentos" e organizações, encastelados na máquina governamental, que reivindicam para si o direito de falar pela "raça negra". Na verdade, não existe uma "raça negra", mas é preciso inventar uma para ser dela o porta-voz. É de lamentar que, na opção pelo debate, exista mais o receio de comprar uma briga de resultados imprevisíveis do que a compreensão da magnitude da ruptura que está prestes a promover em nossa tradição republicana. Mas já é alguma coisa. A Constituição de 1988, como as anteriores, não reconhece a idéia de raça como um critério real de distinção entre os indivíduos e a ela só se refere para dizer que é crime discriminar as pessoas por critérios raciais. As cotas, por sua vez, são raciais, isto é, conferem legitimidade à idéia de raça. A bem dizer, a celebram. A razão apresentada por seus idealizadores é que, no dia-a-dia, critérios raciais são efetivamente importantes no destino de cada um, razão pela qual a solução seria assumir isso como um dado da realidade e tratar de amparar os racialmente oprimidos, o que incluiu apoiar e promover a auto-estima racial entre eles. O diagnóstico está errado e o remédio é um veneno. Comparado ao resto do mundo, o Brasil não tem do que se envergonhar quando o assunto é a importância de critérios raciais no destino de cada um. Para provar o contrário, o governo divulga mil e uma interpretações de estatísticas recolhidas pelo IBGE e outros organismos. Nenhuma delas resiste a uma observação mais atenta, pois são todas construídas sobre equívocos, preconceitos e até trapaças metodológicas. O racismo existe entre nós, sim, e cada manifestação sua é cruel e covarde, fere, avilta e humilha. Mas existe também presente na cultura brasileira uma grande aversão ao racismo, que se expressa numa vergonha de parecer racista. Somos miscigenados demais e possuímos um passado histórico muito particular - não podia ser diferente. Podemos não ser exatamente cordiais, a bem da verdade somos cada vez menos, mas não temos o defeito da intolerância racial, não somos escravos dessa estupidez. Que Deus e os orixás nos conservem assim. O certo é que nenhum garoto deixa de entrar na universidade por causa da cor da pele. Não passa no vestibular quem não teve uma boa escola. E por não havê-la tido é que se é reprovado nos concursos para o serviço público, onde também querem criar cotas raciais. O problema está na escola que falta à população pobre de todas as cores. Todo mundo sabe disso, menos o governo. O remédio prescrito é um veneno. Nem importa o quanto critérios raciais influem na vida das pessoas, isso não pode ser tomado como um dado da realidade com o qual devemos nos conformar. Critérios raciais não podem influir no destino dos indivíduos, pois não passam de preconceitos tolos, nascidos da ignorância e da imperfeição humana. A solução não está em obrigar as pessoas a se declararem isto ou aquilo, ao mesmo tempo em que o orgulho racial é açulado (ninguém sabe onde fica a fronteira entre a auto-estima e o orgulho). Deviam parecer escandalosas as semelhanças de tudo isso com a Alemanha nazista. O governo está convencido de que somos um povo racista (nisso, ele não inova; historicamente, os governos sempre tiveram uma péssima impressão do povo). Mas não somos. Eles, os que nos governam, podem ser. No mais das vezes, são mesmo, sem saber e sem querer - o que apenas torna tudo mais lamentável e triste, mas não menos trágico. Num debate eleitoral, em 2002, Lula defendeu a idéia de que a ciência poderia ter a última palavra sobre a raça de um indivíduo. Muita gente preferiu fazer que não via, mas ele expressou uma idéia racista, mesmo sem saber. Sentir-se-ia ofendido se alguém o avisasse disso. Parece que chegamos ao ponto em que nada mais escandaliza. Quem poderia dizer, até pouco tempo, que uma universidade como a UnB, em pleno sol do meio-dia, haveria de instituir uma comissão para atestar a filiação racial dos candidatos aos seus cursos de graduação? Como já foi observado, foi criado o primeiro tribunal de pureza racial no Brasil. Um dia, a UnB vai ter vergonha do que andam fazendo em seu nome. Enquanto isso, uma meia dúzia de Zé Mané, Zé Goiaba e Zé Ruela vai ter o poder de distribuir certidões raciais por aí. Haja paciência. É cada vez mais difícil conservar a boa educação, mas isso não pode ser outra coisa senão sinal dos tempos. * Historiador e professor da Uerj, autor de tese sobre escravidão

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