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Como vai ser o Enem com a cara de Bolsonaro? Não vai ter defesa da Terra plana

Será uma prova sem as questões que claramente não tinham ‘a cara do governo'

Foto do author Renata Cafardo
Por Renata Cafardo
Atualização:

As denúncias sobre interferência no conteúdo do Enem revoltaram especialistas e autoridades, mas não dá para acreditar quando Jair Bolsonaro diz que está com a “cara do governo”. O exame não vai perguntar se a Terra é redonda. É preciso se preocupar com as ausências. Será um Enem sem as questões que claramente não tinham “a cara do governo”. E sobre o que elas falavam? Sexualidade, gênero, racismo? Tinham músicas ou trechos de livros de autores considerados esquerdistas?

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O processo de montagem da prova é complexo. Não é nada fácil uma pessoa, por mais mal intencionada que seja, incluir uma pergunta do gosto do presidente. Existe no Inep o chamado Banco Nacional de Itens, que é abastecido por questões feitas por professores de universidades contratados há anos para isso. Elas são ainda pré-testadas antes de entrarem no Enem, ou seja, aplicadas a adolescentes do ensino médio. É assim que se sabe se elas foram consideradas fáceis ou difíceis.

O Inep não fez pré-testes em 2020 e 2021, por causa da pandemia. As questões que estão à disposição para serem usadas foram feitas em 2019 ou antes. E não são muitas, já que há dois anos também não se abastece o banco.

O Inep, órgão do Ministério da Educação que, entre outras atribuições, é responsável pela elaboração do Enem Foto: Andre Lessa/Estadão

Esse é um problema antigo, só agravado pela covid. Especialistas já sugeriram até que o governo comprasse questões de empresas para aumentar o banco e dar mais opções às equipes que montam as provas. Além disso, muitas feitas por aqui são até descartadas porque não dão conta de avaliar corretamente, de acordo com a metodologia da prova, a Teoria de Resposta ao Item (TRI).

Algumas induzem ao erro ou têm duas alternativas que parecem corretas até para o melhor aluno. O número total de itens no banco é sigiloso, mas estima-se que haja hoje centenas de questões apenas, o que é pouco, já que cada prova usa 180 deles.

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Então, o cenário na sala segura do Enem era o seguinte: um banco de itens com poucas opções somado à pressão para fazer uma prova sem questões que seriam alvo de reclamação dos bolsonaristas. A única alternativa era passar o facão. Dificilmente enunciados foram mudados. Ou termos da preferência do pastor Milton Ribeiro incluídos em perguntas. Isso prejudicaria a métrica e apareceria nas notas. Tanto é que, depois do facão, eles tiveram de recolocar 13 das questões.

Não veremos domingo um exame com cara de Bolsonaro ou com ideias de Olavo de Carvalho. Mas a interferência político-ideológica pode ter retirado conteúdos importantes, que vão ficar escondidos para sempre das escolas e da sociedade brasileira. Por pressão do presidente da República, não se pode decidir o que universidades querem saber de seus candidatos. Muito menos o que professores devem deixar de ensinar – o exame tem também a função de sinalizar o currículo. Anos e anos dessa interferência, somente pela ausência, podem ser devastadores para a educação brasileira.

*É REPÓRTER ESPECIAL DO ‘ ESTADÃO’ E FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO (JEDUCA)