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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Combate às fake news II

Proponho uma ferramenta disponível a todo ser humano racional capaz de ler notícias

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Atualização:

SÃO PAULO - Na última coluna, conversamos sobre como combater a praga das fake news. Hoje existe um esforço institucionalizado para enfrentá-las. O Facebook, por exemplo, fechou parceria com duas agências de verificação de notícias no Brasil, Aos Fatos e Lupa, como já fizera no exterior, para coibir a sua propagação. Quando algo é denunciado como inverídico pelos usuários, a rede social recebe um alerta e cria um cadastro de suspeitos. Essa lista será repassada às agências, que verificarão o conteúdo e sinalizarão se é falso ou verdadeiro. Ao serem rotuladas como fake news, as postagens não poderão mais ser impulsionadas mediante pagamento, como acontece com os conteúdos patrocinados. Além disso, quem quiser compartilhá-la receberá antes um aviso de que se trata de uma notícia classificada como falsa. Nos EUA, o instrumento se mostrou eficaz, reduzindo em 80% o compartilhamento de mentiras deliberadas. Mas esses 20% restantes ainda são capazes de fazer um estrago por causa do volume de usuários das redes sociais.

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Dada a antiguidade do recurso à mentira para garantia de interesses, legítimos ou escusos, é irrealista imaginar um mecanismo com 100% de eficiência. Mas podemos reduzir essa praga se também nós, leitores e consumidores de conteúdo, adotarmos mecanismos pessoais para nos proteger. Na coluna anterior, propus uma ferramenta social, a de estourar a própria bolha da internet e diversificar nossas fontes de informação. Hoje quero propor uma ferramenta adicional, cognitiva, disponível a todo ser humano racional capaz de ler uma notícia.

O cérebro humano é mais inclinado a acreditar do que a desconfiar. Tanto que, quando cremos em algo, nosso impulso natural é buscar informações para confirmar que estamos certos. Com o amadurecimento da consciência da humanidade, e diante da crescente complexidade social, foi ficando claro que esse impulso natural, que resolvia os problemas quando morávamos nas savanas, não funcionava nas tentativas de investigação mais profundas dos mecanismos do mundo. Foi quando surgiu o método científico. Em diferentes partes do mundo antigo, pensadores como o grego Aristóteles e o árabe Ibn al-Haytham começaram a propor métodos de observação sistematizadas, baseadas em hipóteses, que deveriam ser submetidas a testes controlados, cujos resultados precisavam ser anotados para que conseguíssemos reproduzi-los. A crença pura e simples, a impressão ou a opinião já não bastavam para sustentar o conhecimento.

Essa é a primeira lição do método científico para combater as fake news. Transformar as opiniões em hipóteses, suspendendo a crença absoluta e substituindo-a pela pesquisa. Perguntar qual o fundamento por trás de uma alegação, inquirir de onde ela vem, o que a sustenta, é uma postura análoga à pesquisa científica prévia que qualquer cientista tem de fazer para dar credibilidade à sua hipótese. Se crível, então ela passará a ser testada.

Aqui entra outro avanço do método científico. Na primeira metade do século 20, os filósofos da ciência notaram que não bastava fazer experiência que corroborasse as hipóteses. É sempre possível juntar fatos que, aparentemente, mostrem que estamos certos. Quem anda com alho nos bolsos diz que nunca ter sido atacado por vampiros é prova da eficácia dos tubérculos. Assim, uma ideia só poderia ser considerada científica se fosse passível de falseamento, ou seja, se criássemos experimentos capazes de mostrar que ela está errada. Se o experimento não conseguisse fazê-lo, a hipótese sobreviveria – ao menos por ora. Não basta carregar o alho e não ser atacado pelo Drácula; o verdadeiro teste é abandonar o ingrediente para ver se algum vampiro surge. 

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E essa é a segunda lição da ciência. Desconfiados de informações que recebemos, não basta buscar tentar confirmá-la – até porque não faltarão resultados na internet que a comprovem. Vale a pena, como um cientista, se perguntar como ela poderia ser desmentida. Se não encontrarmos prova de que ela é falsa, admitimos que é verdadeira. Pelo menos até que surjam novas evidências. Sejam elas favoráveis ou contrárias.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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