Cambridge, em primeiro lugar

Tradição e vanguarda na melhor universidade do mundo, segundo um de seus fellows

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Fundada em 1209, Cambridge é a sétima mais antiga universidade do mundo. É também a campeã do Nobel: 87 de seus membros já ganharam o prêmio, um deles, duas vezes

 

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Numa tarde fria de fevereiro de 1953, Francis Crick demorou-se no Laboratório Cavendish, no velho centro de Cambridge, Inglaterra, conferindo uns dados, enquanto seu colega de pesquisa, James Watson, foi para o Eagle, a alguns passos dali, na Saint Benet Street, para a habitual cervejinha com os amigos e colegas na parte dos fundos do pub. Pouco depois chegava Crick, que anunciou: “Jim, acabamos de descobrir o segredo da vida!” Estava concluída a investigação sobre o DNA, que envolvera vários pesquisadores de Cambridge. Ambos ganhariam o Prêmio Nobel de Medicina em 1962. Só no dia 25 de abril a revista Nature publicaria o artigo dos dois anunciando a descoberta que revolucionaria a genética, a ciência e o próprio cotidiano do século 20.

 

Hoje, na parede externa do pub, uma placa anuncia aos passantes a primazia da velha casa no anúncio do feito. O Eagle é um dos mais antigos pubs de Cambridge, aberto em 1667, numa construção que pertence ao Corpus Christ College. No forro de madeira de uma das salas, escritos a fogo com a ponta de cigarros, muitos soldados aliados na 2ª Guerra Mundial gravaram seus nomes em vésperas de combate. Os que não voltaram para casa hoje estão sepultados no Cemitério Americano de Cambridge ou no fundo das águas geladas do Mar do Norte. A guia de uma excursão que todas as sextas-feiras percorre os lugares de Cambridge em que há fantasmas famosos jura que ali, altas horas da noite, frequentadores invisíveis voltam à procura dos companheiros de armas.

 

O pub Eagle, onde se anunciou a descoberta da estrutura do DNA

 

Marcos da ciência estão por todos os cantos em Cambridge. Em frente ao Trinity College e ao que foi o aposento de Newton, no século 17, uma macieira descendente da famosa parenta de que caiu a maçã que o inspirou, segundo ele mesmo, a teoria da gravidade, anuncia aos curiosos a sua verde verdade. Pouco adiante, incrustada solenemente na fachada do Caius & Gonville, a estátua de William Harvey celebra o membro do college que, no século 17, descreveu corretamente a circulação do sangue.

 

A descoberta de Crick e Watson é um entre tantos avanços científicos decisivos que ocorreram no interior dos edifícios de Cambridge. Mesmo assim, ao voltar das férias nesta semana, alunos e professores farão justiça aos bons vinhos das famosas adegas de seus colleges para comemorar a notícia do início deste mês de que, no índice QS das Melhores Universidades do Mundo de 2010, sua universidade vem em 1.º lugar, com a nota 100.

 

Cambridge já aparecia entre as três primeiras, ultrapassando agora Harvard. Alunos e professores sempre lembram a quem as compara que a famosa e destacada universidade americana foi fundada, no século 17, com livros e recursos de John Harvard, um puritano que fora aluno de Cambridge e membro do Emmanuel College, que o celebra num vitral de sua capela. A USP, nesse índice, ficou em 253º lugar, com a nota 41,7 e vem caindo: em 2007, estava no 175º lugar, embora em outros índices internacionais venha tendo posições destacadas. O índice QS leva em conta os costumeiros indicadores de avaliação de qualidade institucional. Sobretudo, quanto a pesquisa científica está voltada para metas propriamente humanas.

 

Coleção de Nobel

 

Para um brasileiro é um tanto difícil entender os critérios e o diferente modo de vida que fazem de Cambridge a melhor universidade do mundo e, provavelmente, hoje uma das mais procuradas universidades, não só pelos ingleses, mas também por estrangeiros. Cambridge é a Universidade dos Prêmios Nobel. Desde 1904, 87 membros de seus colleges ganharam o Nobel, um deles ganhou-o duas vezes. Só o Trinity College tem 32 ganhadores do prêmio. Não é incomum encontrar um deles na feira ou Stephen Hawkins no cinema. Harvard tem 43 Prêmios Nobel, Yale tem 17, Chicago tem 85, a Universidade da Califórnia tem 57.

 

Cambridge é a sétima mais antiga universidade do mundo e foi fundada em 1209. Mantém fortes características tradicionais, tanto nos ritos quanto no modo de vida nos colleges. Conserva critérios comunitários de convivência, de pertencimento e de estudo herdados da tradição monástica e é isso que faz dela uma universidade não só de ensino e pesquisa, mas também de criação. Em Cambridge não há apenas uma escola, há também uma cultura que impregna a vida cotidiana de estudantes e professores, da música à ciência, da reflexão à conversação. Apesar de moderníssima, atualizada e precursora nos meios de produção do conhecimento, é no modo de vida com estilo que se distingue de outras universidades. É isso que lhe assegura o lugar que tem na produção do conhecimento e nos êxitos que logra.

 

A macieira neta daquela de Isaac Newton é um dos pontos turísticos de uma universidade que prima pela criação

 

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Como Oxford, Cambridge tem uma estrutura dupla, a da universidade e a dos colleges. Alunos e professores ingressam em ambos. O ingresso na universidade é aberto aos que no ensino prévio obtiveram classificação AAA, dos estrangeiros exigindo-se classificação equivalente. No entanto, o que decide o ingresso é a entrevista, quando os examinadores investigam mais a vocação e a erudição do que a informação. Cambridge busca talentos, mentes criativas, os jovens que darão continuidade a sua história de universidade de ponta. Não bastam as boas notas. Além disso, o candidato escolhe um dos colleges para nele ingressar. Aquela será sua comunidade de convivência cotidiana e de residência durante o curso e sua comunidade de referência até ao fim da vida. A escolha não é unilateral. Também ali será o candidato entrevistado, examinado e acolhido ou não.

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A simbiose entre colleges e universidade não afeta a autonomia dos primeiros, que não são escolas, mas lugares de moradia e de estudo. Eles não têm salas de aula. Se na universidade os professores dão aulas, nos colleges eles fazem supervisão de estudos. Cada estudante pode dispor de um certo número de horas dos fellows (os professores) de sua área para colóquio e assistência pessoal. Sendo a maioria dos colleges constituída por generosas doações de membros da nobreza do passado, dotados de fundos próprios, como terras, casas e ações, são economicamente autônomos e, não raro, provedores de bolsas e meios para alunos de menores recursos. Os colleges são, por isso, decisivos na disputa da universidade pelos alunos vindos da escola pública. Ex-alunos são também grandes doadores, coisa que não acontece aqui.

 

É nos colleges que professores e alunos convivem, almoçam e jantam, mesmo os professores que já não residem ali. Ainda hoje, os jantares, a chamada high table, presidida pelo master, que os inicia com uma oração em latim, ocorrem no mesmo hall, fellows e scholars trajando beca.

 

A relação de ensino-aprendizado é fundamentalmente coloquial. E se apoia sobretudo nas leituras e no trabalho nas bibliotecas. A maior riqueza de Cambridge está na University Library e seus milhões de volumes de livros e revistas científicas, aos quais o leitor tem acesso direto. Mas está também nas bibliotecas dos institutos e faculdades e nas bibliotecas dos colleges. Destas últimas, alunos e professores têm a chave e podem frequentá-la a qualquer hora do dia ou da noite.

 

Em dias de exames, não é raro ver alunos nas bibliotecas na alta madrugada. Eles têm motivo. A reprovação numa única disciplina exclui o aluno da universidade e do college. Não há esses melancólicos expedientes de nossas universidades, derivados do que foi um dia a segunda época. Em Cambridge, se quiser, e tiver bons motivos, o aluno pode recorrer contra a expulsão ao juiz da universidade, um magistrado geralmente aposentado da Corte Suprema.

 

Participei de dois julgamentos desse tipo em meu college, quando fui professor catedrático daquela universidade, em 1993 e 1994. Um dos reprovados reconheceu que passara mais tempo remando no Rio Cam do que lendo livros na biblioteca. Mas argumentou que contribuíra para que Cambridge vencesse Oxford em famosa disputa anual de remo no Rio Tâmisa. Foi expulso por unanimidade, com a decisão adicional de que se a sentença do juiz lhe fosse favorável, poderia voltar à universidade, mas não ao college.

 

Um segundo caso foi o de um aluno considerado excelente por todos os professores que, de repente, tivera claro e progressivo declínio em seu rendimento escolar. No apelo, explicou que seus pais haviam se separado e ele se tornara arrimo da mãe. Os estudos em Cambridge são em tempo integral. Estudava de dia e à noite trabalhava numa “fábrica” de sanduíches, estabelecimentos que preparam os famosos lanches encontrados nos cafés e supermercados todo dia de manhã. O college concedeu-lhe uma bolsa generosa, suficiente para cobrir suas obrigações de família, reintegrou-o e assumiu sua defesa perante o juiz da universidade. Não tinha motivos para privar-se de sua inteligência.

 

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É PROFESSOR EMÉRITO DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE A APARIÇÃO DO DEMÔNIO NA FÁBRICA (EDITORA 34)

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