Pelo menos 31 universidades federais têm cotas para negros em mestrados e doutorados

Menos de um terço dos alunos de pós-graduação no Brasil é preto ou pardo; especialistas afirmam que diversidade melhora qualidade da pesquisa e traz mais impacto social

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Por Victor Vieira
5 min de leitura

Renata Henedino, de 24 anos, fala com saudade do laboratório, que parou de frequentar em março por causa da pandemia. Hoje uma segunda casa para a aluna de mestrado em Ecologia, a universidade nem sempre foi uma experiência fácil. "Entrei no curso de Ciências Biológicas em 2014 e tive um choque. Eram colegas que tinham feito intercâmbio, falavam duas, três línguas, muito diferentes de quem eu conhecia." A jovem, negra, comemorava a chegada ao câmpus, mas logo notou as dificuldades dali em diante. Isso porque a graduação foi só o início do percurso acadêmico: queria ser pesquisadora. 

Com as cotas, pela primeira vez, em 2018, universidades públicas tiveram mais da metade (50,3%) de negros na graduação. Já em mestrados e doutorados, o desnível é maior. Segundo balanço de 2019 da Capes, órgão do Ministério da Educação (MEC) que cuida desses cursos, só 29% dos alunos de pós-graduação eram pretos ou pardos, considerando os estudantes com dados disponíveis. Segundo o IBGE, 55,4% da população brasileira é negra.

Renata Henedino, aluna do mestrado na UFMG, defende representatividade: 'Só tive duas professoras negras desde a graduação' Foto: Washington Alves/Estadão

Com o objetivo de ter mais diversidade na pesquisa, ações afirmativas também avançam em mestrados e doutorados. Ao menos 31 das 69 universidades federais têm normas gerais de reserva de vagas para negros em seus programas de pós, entre elas a de São Paulo (Unifesp), Brasília (UnB) e a de Minas (UFMG), onde Renata estuda. Em outras instituições públicas, as cotas não são regra geral, mas iniciativas de cada programa.

Diferentemente da graduação, em que há a lei federal de 2012, os modelos de cotas variam. Em algumas instituições, é obrigatória a ação afirmativa, mas sem porcentual definido de reserva. Nas federais com índice fixo, o valor varia de 10% a 50%, e muitas vezes incluem indígenas e pessoas com deficiência. Há possibilidade também de oferta de vagas extras. No Rio, uma lei de 2014 exige 12% de cota para negros e indígenas na pós das instituições estaduais.

Segundo Anna Carolina Venturini, pós-doutoranda e pesquisadora do AFRO-Cebrap, esse movimento ganhou força após uma portaria normativa do MEC, de 2016, que fomentava o debate sobre ações afirmativas na pós-graduação. Embora não exigisse as cotas, a portaria foi interpretada como obrigatória em muitas instituições. Em junho deste ano, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou  revogar o texto, o que motivou forte reação do Congresso, do Ministério Público Federal e da comunidade acadêmica. A portaria acabou restabelecida.

Em várias instituições, não essa norma geral para todos os mestrados e doutorados, mas iniciativas dos próprios programas de pós - o número de pós com algum tipo de reserva de vaga cresceu de sete para 134 entre 2015 e 2018, segundo estudo feito por Anna Carolina no doutorado. São mais comuns nos cursos de Ciências Humanas e Educação do que em campos elitizados, como Medicina e Engenharia.

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Como o ingresso na pós é mais complexo do que o vestibular, adaptações foram necessárias, como reduzir notas de corte ou permitir a certificação em idioma estrangeiro durante o curso, e não no início. "A maior parte dos programas replicou o modelo da cota da graduação, mas sem pensar se faria sentido", diz Anna Carolina.  Já a Capes disse, em nota à reportagem, que as ações de inclusão são de responsabilidade das instituições, "no exercício da autonomia universitária". 

Para Renata, a ação afirmativa ajuda a equilibrar a competição. Entre alunos mais pobres, o acesso à universidade é uma conquista, mas não garante as mesmas oportunidades. Filha de uma servidora pública e um motorista, que passou por vários períodos desempregado, ela equilibrava o tempo na graduação entre as aulas, a iniciação científica e o trabalho remunerado, em uma creche em Sabará, cidade vizinha de Belo Horizonte. "A gente nunca teve muita grana", conta. 

No grupo de pesquisa, foi voluntária por um ano até finalmente conseguir bolsa. "Meu professor era compreensivo, pois era difícil ir a algumas visitas de campo por causa do trabalho", diz ela, cuja pesquisa envolve analisar impacto do rompimento da barragem de Mariana (MG) na qualidade da água do Rio Doce. No futuro, os planos são de um doutorado e, depois, ocupar outro espaço na universidade. "Só tive duas professoras negras desde a graduação." 

Mais diversidade faz ciência inovar, afirma pesquisadora

O risco à excelência da pesquisa com a mudança no rigor do ingresso é um dos principais argumentos para criticar as cotas na pós. Ainda não há dados robustos sobre efeitos da reserva de vagas nessa área, mas estudos com cotistas na graduação não apontaram perda de qualidade. "Mais diversidade gera benefícios para a qualidade da ciência, que será mais inovadora e capaz de responder a problemas sociais do País", diz Anna Carolina. A multiplicidade de temas e abordagens trazida pelo novo perfil de estudante é apontada como vantagem.

"Até o sentido de meritocracia tem mudado. Não dá para falar em impacto só pelo número de artigos e citações, mas pelo impacto na sociedade", defende Charles Morphy, pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do ABC (UFABC). A instituição também prevê ações afirmativas em mestrados e doutorados, mas não fixa um porcentual de vagas.

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Envolvido em estudos sobre a covid-19, o virologista Anderson Brito, de 35 anos, exemplifica como a experiência pessoal pode ajudar no entendimento do trabalho. Nem sempre, diz ele, cientistas que desconhecem a realidade das favelas e bairros pobres percebem o alcance limitado da estratégia de isolar infectados em um cômodo da casa ou de trabalho remoto. "A pandemia trouxe essa realidade como um soco. A maioria dos brasileiros vive em casa de um ou dois cômodos, trabalha com o pé na rua", diz.

Filho de um motorista e uma servidora pública da periferia do Distrito Federal, em uma família vinda do Nordeste, Brito ingressou como cotista na graduação da UnB após quatro reprovações no vestibular. Era o único negro de escola pública da turma. Depois, seguiu sem cotas na carreira acadêmica, em um tempo em que ações afirmativas na pós ainda eram raras. Hoje, é pesquisador da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale (EUA), depois de passar pelo mestrado na Universidade de São Paulo (USP) e o doutorado no Imperial College, de Londres.

Brito destaca a importância das políticas de inclusão na universidade e da representatividade na sua trajetória. O único professor negro que teve na graduação inspirou o jovem a ir em frente. "Ele serviu como espelho. Tinha origens muito similares às minhas, de uma família periférica, que passou por dificuldades financeiras." E, segundo Brito, ambientes mais diversos favorecem não só quem consegue entrar, mas aqueles que olham de fora. "Percebo que, para muitos, sou um modelo de carne e osso", conta, ao citar três primos que garantiram uma vaga no ensino superior depois dele. "Certamente entraram pela capacidade deles, mas minha presença mostrou que aquilo era remotamente possível."