Em seu primeiro ano de vida, a criança realiza um gigantesco trabalho de auto-organização, em que a percepção do espaço e o desenvolvimento das bases da linguagem são essenciais. Ela não fala e não compreende a fala, especialmente do modo como o adulto a realiza e a compreende. Desde cedo, tratará, em parte pelo dinamismo de seu organismo, em parte pela informação que vem do outro que a acolhe, a operar com as formas da língua. O som da voz humana é matéria primordial para sua descoberta, e isso se faz nas conversações que o adulto tem com ela, com as cantigas, os ninares, os cantos e contos. Há que reconhecer que ler para a criança no ventre e em seu primeiro ano não é ler no sentido convencional. O conteúdo que recebe é outro, relacionado com o afeto e não com os sentidos referenciais. Importa a interação focada e intensa, o que pode ser feito com o livro, histórias, cantigas, conversas.
O mais significativo para a criança é a diversidade e a intensidade de experiências. Crianças com possibilidade de experimentar-se na vida sem a violência do silenciamento, que brincam e mexem com as coisas, que ouvem história e cantorias, e que interagem com diversidade de registros orais desenvolvem-se com a mesma intensidade que “crianças leitoras”. A leitura – é justo que se diga –, mesmo quando intensa e com textos criativos, é uma possibilidade, mais que uma necessidade. Uma ótima possibilidade, mas, ainda assim, uma possibilidade.
Por outro lado, é mister observar que ler com a criança, especialmente quando se faz dessa atividade um momento de estar juntos, instaura um espaço privilegiado de intersubjetividade, de efeito recíproco, com claras repercussões na constituição da personalidade e no desenvolvimento integral.
A leitura e a circunstância que se cria com ela instauram um vínculo que permite elaborar tensões psíquicas, de projeções de desejos e ansiedades, e de produção de memória de um fazer comum em que se exploram lugares, pessoas, coisas reais e imaginárias.
O texto, a história e o livro são, nesse sentido, objetos da experiência conjunta, mediadores materiais (culturais e físicos) do vínculo. Daí a importância da rotina: a na repetição criativa e prazerosa (não é só o prazer do texto, é o prazer de estar fazendo junto a leitura) torna-se um forte elo entre o adulto e a criança, elo que repercutirá por toda a vida. Essa dinâmica, é verdade, pode ser instaurada de outras formas e com outros objetos, e é bom que assim seja. A diversidade das experiências apenas enriquece a vivência com as coisas do mundo, a intersubjetividade e o afeto. A particularidade da leitura está exatamente na especificidade do objetivo e na dimensão projetiva para fora de si e para o mundo da cultura, bem como no tipo de investimento intelectual e cognitivo que ela implica.
* Doutor em Línguistica, é professor da pós-graduação da Universidade Federal do Oeste do Pará.