A ilusão das cotas e a realidade da pobreza

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Por Agencia Estado
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Rolf Kuntz * Responda rapidamente: qual a solução, se escola de pobre é ruim e pobre não consegue entrar na universidade pública? Se responder que a saída é cuidar do ensino fundamental e do ensino médio, você mostrará que está por fora. A resposta correta, segundo o padrão brasileiro, é criar uma cota para alunos de escola pública. Não adianta perguntar: se alguém não consegue passar no exame normal de admissão, que diabo poderá fazer na universidade? Parece estranho imaginar que tudo estará resolvido se o estudante puder ingressar, por uma porta qualquer, numa faculdade. Mas essa idéia parece implícita na política do governo central. Universidades federais deverão reservar 50% de suas vagas de acesso para alunos provenientes de escolas públicas, segundo projeto que será enviado ao Congresso Nacional. O plano foi anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, na quinta-feira. Cotas para negros e índios deverão estar incluídas nessa parcela. "Esse sistema especial também vai promover a igualdade racial no acesso à universidade pública", disse o presidente. Com esse projeto, mais uma vez o governo Lula mostra sua vocação para atacar o problema errado. Um mínimo de bom senso bastará para mostrar que o problema não está no sistema de admissão à universidade. Os vestibulares podem ser muito defeituosos, mas essa é outra questão. Ainda que fossem melhorados, isso não eliminaria a diferença de formação dos candidatos. Talvez se possa atenuar essa diferença em cursos básicos nas faculdades, planejados para nivelar os alunos ou pelo menos para diminuir sensivelmente os desníveis. Mas nem isso torna razoável e eficiente o sistema de cotas. O sistema, em primeiro, é injusto em relação a alunos com preparo suficiente para entrar na universidade, que serão impedidos de entrar para que outros sejam favorecidos. Mesmo que essa ponderação seja desprezada, resta o problema dos milhões de alunos condenados à má formação da escola nos níveis fundamental e médio. É aí que se encontra a grande injustiça. Se um aluno, mesmo pobre, tem condições de freqüentar uma escola, é essencial que receba a melhor formação possível. Se não tem condição, é preciso que o governo lhe ofereça as condições necessárias, por meio de bolsas. Só não se pode aceitar que a baixa qualidade da escola pública seja entendida como fatalidade, como um dado incontornável. Mas tem sido essa a atitude dos governos, há muito tempo. É inútil instituir e tornar obrigatório o provão do ensino médio, quando não se toma providências para mudar o quadro. Que novidade traz o provão? Provavelmente nenhuma. Todos sabem que as escolas públicas são na maior parte muito ruins, que os professores mal ganham para sobreviver e que trabalham nas piores condições. Todos sabem, também, que ir à escola na periferia das grandes cidades envolve risco de vida. Tudo isso é conhecido. No entanto, num país de analfabetos funcionais, perde-se tempo com discussões inteiramente inúteis sobre o regime de promoção (deve-se ou não reprovar?) e sobre truques para ampliar o acesso dos pobres à universidade. E a insânia não pára nesse ponto. Envolve-se no debate a questão racial, como se os alunos fossem prejudicados, num vestibular normal, pela cor da pele e não pela formação deficiente. É uma estupidez falar em discriminação racial, quando o problema é a má educação oferecida aos pobres de todas as raças. Não se resolverá nenhuma questão importante enquanto o governo, em todos os níveis, for incapaz de transformar a educação numa efetiva prioridade. Prioridade não é discurseira nem palhaçada. É definição clara de objetivos, com metas fixadas de acordo com prazos, critérios de avaliação de resultados e destinação dos meios necessários. Foi o que se fez nos países que em 20 ou 30 anos saíram do atraso e da pobreza e se tornaram grandes competidores nos mercados mundiais. Não foi criando atalhos para o ingresso na universidade que os governos desses países criaram empregos, desenvolveram tecnologia e redistribuíram renda. Mas, para desenvolver políticas desse tipo, é preciso ter coragem de cortar outros gastos, atropelar interesses corporativos e pôr a máquina do Estado, mais enxuta e mais eficiente, a serviço de um projeto de modernização. O resto é conversa fiada. * Professor do Departamento de Filosofia da USP e jornalista de O Estado de S. Paulo

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