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A educação domiciliar deve ser legalizada?

Maria Celi Chaves Vasconcelos, da UERJ, diz que é preciso refletir sobre a demanda dos pais que vêm prática como melhor para seus filhos; Silvia Colello, da USP, defende a escola como espaço de convivência com a diversidade de crianças e professores

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Por Redação
Atualização:
A opção pela educação em casa, que até poucos anos atrás se restringia a algumas famílias, tem ganhado adeptos Foto: Lucas Jackson/Reuters

SIM - Maria Celi Chaves Vasconcelos.*

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A escola como conhecemos é uma invenção relativamente recente, consolidada no Brasil no fim do século 19, quando, pouco a pouco, se torna hegemônica sobre as outras formas de educar. O século seguinte marca o período em que a educação realizada em instituições específicas para esse fim, mantidas ou autorizadas pelo Estado, passam a ser os únicos espaços considerados legítimos para a educação formal, destituindo de chancela legal qualquer outro formato da escolarização. Educação e escola tornam-se palavras tão imbricadas de sentido que são usadas como sinônimas, esquecendo-se a probabilidade de ações distintas entre essas duas concepções. 

Se o século 20 pode ser considerado o século da escolarização como um dos ideais sociais a ser universalizado, o mesmo se pode dizer desse novo século que se inicia? As inovações tecnológicas e os avanços relativos à cibercultura fazem com que desapareçam os limites físicos para a aquisição do conhecimento e outros lugares, como a própria casa, podem tornar-se espaços de educação formal. Essa possibilidade logo é percebida por famílias, especialmente algumas descontentes com os sistemas de ensino público e privado, que buscam alternativas para a educação de suas crianças. Ao empreender essa modalidade, optando por educar na casa, as famílias deparam-se com um grande obstáculo: a legislação brasileira. 

Embora a lei não especifique a proibição do ensino domiciliar, a falta de frequência à escola implica suposição de “negligência dos pais”. Por outro lado, também não há nenhuma regulamentação que normatize a forma como o ensino domiciliar possa ocorrer, fazendo com que o Estado, no cumprimento da legislação vigente, tenha de verificar se não está havendo abandono intelectual para a educação daqueles inseridos em outro sistema, diferente do escolar.

A cada dia faz-se mais urgente uma solução legal. Não se pode simplesmente desconsiderar a demanda dessas famílias, ou torná-la invisível, ainda que diante de tantas outras urgências que assolam a Educação. Um assunto tão complexo não pode sujeitar-se a brechas na lei, interpretações e julgamentos com base em eventos pessoais. Cabe lembrar, que havendo a alteração que permita essa modalidade, também seria necessária uma regulamentação prevendo a matrícula e avaliações periódicas dos homeschooler no respectivo sistema de ensino. Não se trata de “desescolarizar” a sociedade, mas refletir sobre a demanda dos pais que acreditam nessa prática como sendo a melhor para os seus filhos.

* É DOCENTE DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO E MEMBRO DO CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DO RIONÃO - Silvia Colello. *

No desenvolvimento de um currículo, coleção de disciplinas a serem ensinadas e aprendidas. Educação não se reduz a transmissão de conteúdos, é processo mais complexo, que se beneficia da convivência em grupo e da pluralidade de experiências cognitivas, sociais, culturais e afetivas. Reduzir à transmissão de conhecimento é a primeira falha de quem defende a educação domiciliar. A criança educada em casa perde a oportunidade de conviver com a diversidade, de lutar por seus direitos e de conhecer as regras de convivência institucional. A construção da identidade depende dessas experiências.

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O segundo ponto de deficiência é que, por mais geniais que sejam os pais como mentores, a longo prazo não poderiam suprir os benefícios da convivência com a pluralidade de professores, profissionais especializados nos vários campos de conhecimento e com formação pedagógica. Em uma conta básica, a criança ao longo do ensino fundamental teria contato com pelo menos 50 professores. É impossível que a experiência de lidar com todas essas pessoas possa ser substituída pelo restrito grupo familiar.

Muitos dos pais optam pela educação domiciliar por não quererem que os filhos sejam expostos a ideias que contrariem suas convicções. Educar e preparar uma criança para a vida não é esconder o diferente dela, mas fazer com que ela possa ter consciência sobre a realidade do mundo. Não entendo uma educação que se propõe a perpetuar os valores dos pais e fazer a cabeça do aluno, sem dar a ele o livre arbítrio para pensar por si só.

Ao optar pela educação domiciliar como alternativa para um ensino de qualidade, livre de violência ou bullying, os pais também correm o risco de passar à criança uma mensagem bastante discutível: “resolvemos o nosso problema em casa e o resto do mundo que se vire”.

Além de não preparar a criança para viver no mundo tal como ele é, a educação domiciliar mostra a ela que podemos nos isentar de lutar por uma educação de qualidade para todos. É lamentável o estado de precariedade de muitas escolas, mas a saída para isso é lutar pelo direito à educação, pela valorização do ensino e não resolver o problema no âmbito doméstico.

Por fim, essa criança pode até aprender em casa como resolver problemas de Matemática, mas quem vai ensiná-la a praticar esportes coletivos? Quem vai ensiná-la a ganhar e perder, defender seus pontos de vista, fazer trabalho em equipe?

* É DOCENTE DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), ATUA NAS ÁREAS DE PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO E LINGUAGEM

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