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Blog dos Colégios

O princípio da escrita é escutar

Ontem o dia foi especial. Fui convidada pela diretoria da Escola Projeto Vida para registrar em texto a visita do escritor Mia Couto aos alunos do 8º e 9º anos, que se preparam para ler uma de suas obras, o livro "Estórias Abensonhadas". 

Por Fernanda Tambelini
Atualização:

UAU! Recebi a tarefa com entusiasmo. Afinal, eu ouviria um dos maiores expoentes da literatura contemporânea. O entusiasmo vinha das minhas variadas facetas, a de leitora, de mãe cuja filha estuda na escola que teria o privilégio de recebê-lo, de jornalista, de pessoa que busca inspiração para seguir vendo poesia na vida cotidiana. 

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O encontro aconteceu ontem pela manhã, 16 de setembro, e as expectativas foram mais do que atingidas. Alunos, professores, coordenação e direção da escola tiveram a oportunidade de uma conversa próxima, sincera e simples (mas nada simplista) com Mia Couto. 

Suas palavras me tocaram e, acredito, impactaram os adolescentes e as leituras que farão daqui a diante. Dos livros e do mundo. 

A seguir, compartilho os principais trechos da conversa, não apenas para os que não tiveram a chance de estar lá nesta manhã, mas para voltarmos a elas sempre que precisarmos.

História da pessoa

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Camila Nardoni (professora de Língua Portuguesa): Com muita honra e privilégio, recebemos o escritor moçambicano Mia Couto. Biólogo, jornalista e escritor premiado, tem mais de 30 livros publicados. É muito emocionante receber uma figura tão importante e nossos alunos do 9º ano prepararam algumas perguntas, como introdução à leitura compartilhada do livro Estórias Abensonhadas. 

Mia Couto: Estou muito feliz em estar nessa escola. Já visitei muitas em todo o Brasil e essa é especial, é uma que tem uma história de relação com as pessoas, com seu bairro, com seu mundo. Eu, infelizmente, não tive uma escola como essa. Moçambique na minha adolescência era um país colonial, dominado por uma metrópole europeia, com o racismo como elemento estrutural. De 300 alunos, apenas 3 eram negros. Eu sinto que perdi, porque a escola não me ensinou a relação com os outros. A escola não deve ensinar apenas conteúdos acadêmicos, mas também a convivência entre as pessoas. Estou completo, estou inteiro aqui hoje e espero que esse dia seja lembrado como um momento divertido.

 

Alunos: Você publicou seu primeiro poema aos 14 anos. Teve alguém que mais te ajudou durante seu percurso na escrita?

MC: Sou filho de um poeta. Meu pai tinha uma maneira própria de ver o mundo. Ele sempre me ensinou que para além dessa coisa primeira que a gente vê quando encontramos o outro, é preciso encontrar a história dessa pessoa. Aprendi com ele e com Manoel de Barros que a poesia está nas coisas pequenas. É uma maneira de olhar o mundo, manter um certo espanto. Disposição para conhecer o outro e suas histórias. Poesia é esse convite a descobrir os outros e suas histórias.

 

Alunos: Como você reconhece a importância da infância em sua vida?

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MC: Eu nasci em um período muito duro, de ditadura e guerra. Meu pai foi preso simplesmente por ser poeta. Eu tinha tudo para que minha infância não fosse feliz, mas tive uma infância muito feliz. Não tenho que fazer esforço nenhum para manter o olhar infantil, o olhar que não está maduro. Nunca conheci um avô, pois meus avós estavam em Portugal e eu nasci em Moçambique. Meus pais contavam histórias de sua terra e suas famílias, eu precisava saber qual era minha origem, meu passado. Construí minha família com histórias. Eu tinha inveja porque meus amigos da escola tinham tios, primos, avós. No meu caso, não. Eu inventei esses mais velhos. Inventei com ajuda dos meus pais, que tinham saudade do seu lugar e não podiam mais voltar por razões políticas. Eles contavam histórias à noite com paixão e eram momentos muito felizes. Eles traziam a terra deles para mim por histórias. Eu nunca soube o que era a diferença entre ser velho e ser criança.

 

Alunos: Suas escritas são baseadas no que você viveu e pessoas que você conheceu ou você as inventa?

MC: As duas coisas. Inspiro-me muito no que escuto e escuto muito. Mas para escrever, preciso transformar em coisa minha e, para isso, invento. Quando escuto, estou totalmente presente, escuto não só as palavras, mas também o silêncio, o olhar, os gestos.

 

Alunos: Você acha que o Moçambique de suas histórias está relacionada com a real?

MC: É e não é. O Moçambique da realidade não sei bem o que é. Acho que estou tentando traduzir essa realidade. O que é importante quando se fala de um país é pensar que esse país não é uma única coisa. Eu tenho o Moçambique que eu vi. Mas é um país muito diverso, com 25 línguas diferentes, 25 povos diferentes, que eram 25 nações diferentes. Raças, etnias, culturas e línguas. O que é importante pensar não tem a ver com a literatura, é reconhecer que a gente não sabe. Porque não escutamos quando pensamos que já sabemos. É tão fácil partirmos do pressuposto de que já sabemos o que e como é o outro. Não devemos encaixar as pessoas em categorias: as mulheres, ah, já sei como são as mulheres. Cada mulher é uma pessoa em particular, é um mundo.

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Alunos: Pensando na ideia de um estereótipo de um continente distante, temos uma pergunta. Durante sua carreira, alguém já fez você se sentir menos africano por não se encaixar no estereótipo?

MC: Sim, quando comecei a publicar livros em países da Europa, as pessoas pensavam que eu era uma mulher negra, pois lá os livros não têm foto do autor na contracapa. Acho que a escrita é mais importante que o escritor. Uma vez eu recebi um telefonema de uma professora de uma universidade do Congo, que disse que queria me parabenizar por representar um africano e meus antepassados africanos. Ela não sabia quem eu sou, porque meus antepassados não são africanos. Marcamos um encontro e ela disse que passou anos ensinando seus alunos que eu era um exemplo de africano e eu devia estar enganado, ter algum avô ou avó africanos! 

 

Alunos: Como se dá seu processo de criação, você se programa para escrever ou espera vir a inspiração?

MC: Na verdade, existe um grande convite para que as pessoas falem dos autores, dos escritores ou músicos, mas o importante é o texto, a música, a obra que eles fazem. Ao invés de se discutirem ideias, ataca-se a pessoa que falou. O mundo está muito carente de ideias. Quando não se têm argumentos, ataca-se a pessoa que falou. É uma coisa muito humana, nós no desespero de termos razão, começamos a atacar a pessoa e não a ideia. 

Como eu faço? Tenho momentos em que não tenho inspiração. Eu trabalho como biólogo, tenho horário de entrada e saída do trabalho como qualquer outra pessoa. Mas quando volto à casa e não tenho inspiração, volto ao texto de qualquer forma, nem que seja só para revisar um poema. Na escrita, só 10% é inspiração, o resto é trabalho, trabalho, trabalho...

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Camila: Aqui na escola falamos muito com os alunos sobre a necessidade de reescrita. É assim com você também?

MC: Sim, eu sempre escrevo com a dúvida, como se fosse minha primeira vez e acho isso importante. Tenho quase vergonha do que escrevo!

 

Alunos: Você se imagina atuando só nas carreiras de jornalista ou biólogo?

MC: Eu tenho a decisão de não ser só uma coisa. Ser biólogo para mim é a chance de trabalhar em equipe, é uma paixão, não um trabalho. Sou feliz porque faço duas coisas que mais quero na vida. Trabalho com a vida, no campo, no mar, com pessoas. Isso é o mais importante para mim. Quero saber dos bichos, mas como as pessoas vivem, como se relacionam com a natureza. As pessoas têm outras maneiras de pensar o mundo e se relacionar com ele. Muitos pensam o mundo sem a divisão do ser humano com a natureza. Eu penso meu trabalho assim também, não posso me separar entre minhas atuações.

 

Alunos: Nós, como jovens de São Paulo, talvez nunca viveremos essa conexão com a natureza. Alguma dica para não perdermos essa conexão?

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MC: Acho que talvez precise alterar a pergunta, porque a natureza não é algo que está fora de nós. Está aqui dentro, nós somos natureza. Temos uma relação com o espaço, por mais que seja ocupado do ponto de vista do urbano. Aqui em São Paulo, eu me encantei por uma árvore no Parque do Ibirapuera. Precisei parar ali e conversar com essa árvore, como se ela quisesse me dizer algo. A natureza começa nas pequenas coisas, nas pessoas. Nós pensamos muito que somos o que nossos genes são. Isso não é completamente verdade. Grande parte dos nossos genes não são genes humanos, mas de vírus e bactérias. Somos uma espécie de jardim zoológico gigante, temos mais células não humanas do que humanas. Para viver com a diversidade, precisamos só olhar para dentro de nós. A biologia para mim foi importante por me ensinar isso também.

 

Alunos: Na escola, você gostava de estudar, escrever e ler? Qual seu gênero favorito? Algum autor brasileiro favorito?

MC: Na escola, gostava de ler, mas não era um aluno com grande glória. Meu pai tinha muita poesia dentro de casa, brasileira, espanhola, francesa. Nunca teve uma atitude normativa, ele queria que ficássemos encantados pela história. Era um convite. A paixão que ele tinha por ler passava a nós. A poesia foi muito marcada para mim por um autor português chamado Fernando Pessoa. Com 14 anos, eu me perguntava quem eu sou, será que sou uma pessoa só? Sentia que tinha mais de uma pessoa dentro de mim. Fui salvo pela poesia, pois eu sofria.

Em poucos anos, vocês deverão escolher o que querem ser da vida. A maior parte não sabe e é bom até que não saiba. Não tenham medo de não saber, não tenham medo de suas ignorâncias, pois elas é que dão o impulso para buscar as respostas. 

Meus autores favoritos são Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Manoel Bandeira. São aqueles que me ensinaram a resolver minha própria escrita. 

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Alunos: Como você sente a importância de levar um pouco da cultura moçambicana para o mundo?

MC: Eu não considero que sou importante. Uma coisa é ser conhecido, a outra é ser importante. Eu tenho muito orgulho de poder levar um pouco da cultura de Moçambique para o mundo. Fico feliz de trazer essa bandeira, para que as pessoas saibam que existe um país chamado Moçambique.

Outra coisa que quero dizer é que é uma tentação ser famoso, ter sucesso. Isso não pode nunca ser o motivo para fazer qualquer coisa. Eu faço o que faço porque amo, essa coisa de ser famoso foi uma consequência. A maior parte das pessoas famosas que eu conheço não são felizes. Temos que fazer o que acreditamos, vivermos em um lugar de que gostamos e sermos felizes. 

 

Alunos: Na sua concepção, qual a função da literatura no mundo de hoje? É uma forma de libertação?

MC: Acho que sim! Meu pai era um homem dócil e foi preso por escrever. O medo que os ditadores têm da literatura é um sinal do poder que ela tem. Quem não gosta da liberdade não quer que se pense nem que se sonhe. O Brasil também teve uma ditadura militar que censurou e obrigou pessoas a saírem do próprio país. Acho que a literatura tem essa função de libertação. 

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Alunos: Mesmo em um período pós-guerra, suas histórias são poéticas. De onde você tirou essas inspirações e como conheceu as lendas, folclores e lugares descritos?

MC: Eu me lembro sempre de uma história de um homem que foi persistente no Vietnam. Ele era poeta e foi preso em uma prisão nas piores condições que você pode imaginar. Quando saiu, tinha acabado de escrever na prisão um livro a sua amada com as palavras mais gentis. Eu, como jornalista, perguntei como podia ter escrito aquilo na prisão. Ele respondeu que ignorou as paredes. Quanto mais a guerra nos desumaniza, mais precisamos nos humanizar.  Quanto às lendas, elas estão muito vivas, basta estar atento e escutá-las. O princípio da escrita é escutar. 

 

Alunos: Qual a maior ou principal relação dos países africanos com o Brasil? Acompanhamos o furacão em março e gostaríamos de saber como estão as coisas agora.

MC: O Moçambique conhece melhor o Brasil do que vice-versa. O Brasil, talvez por ser muito grande e diverso, vive muito para dentro de si e olha muito para cima, Estados Unidos e Europa. Não olha tanto para a África. Em geral, não há essa preocupação.

Minha cidade foi atingida pelo furacão. Eu ia para lá quando aconteceu a catástrofe, não pude pousar na minha cidade e vivi uma das grandes angústias da minha vida. A cidade em si não foi a mais danificada, em comparação à zona rural. Eu e meus irmãos construímos uma fundação, que está reconstruindo a escola onde eu estudei. Assim, crianças e adolescentes como vocês puderam voltar a estudar alguns meses após a catástrofe.

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 Foto: Estadão

Foto tirada pelo aluno Guilherme Logan, do grupo Gurus Comunica. Foto: Estadão
 Foto: Estadão

Foto tirada pela aluna Fernanda Garcia, do grupo Gurus Comunica. Foto: Estadão
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