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Opinião|Como conversar sobre guerra com as crianças?

Atualização:

"Andávamos tão invernos,que qualquer outono nos fazia acreditarnão existir primaverasMas ouvimos,cá dentro,como uma brisa despretensiosa:"Vai passar, vocês verão."(Carolina Meyer Silvestre)

 

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Há dois anos, estávamos prestes a ingressar numa longa pandemia que ainda não chegou ao fim. Na época, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já alertava para o possível impacto na saúde mental da população, inclusive de crianças e adolescentes. Desde então, vivenciamos um período marcado por incertezas, medo e perdas que, sem dúvida, seguem nessa travessia deixando marcas na vida de todos nós.

Um artigo recente, publicado em janeiro deste ano, na revista The Lancet Regional Health, referiu um aumento das taxas de depressão e ansiedade secundária à pandemia da Covid-19. Um cenário similar é descrito com relação às crianças.  Em junho de 2021, o psiquiatra Guilherme Polanczyk apresentou um estudo realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), cujos resultados apontaram que uma em cada quatro crianças e adolescentes que participaram da pesquisa apresentou sintomas de ansiedade e depressão durante a pandemia, com necessidade de intervenção de especialistas. De toda forma, se partirmos do pressuposto de que já estamos pelo terceiro ano neste barco, podemos inferir a existência de novos desdobramentos que ainda estão por vir, mas já alertam para a relevância dos cuidados em prol do bem-estar emocional.  

Uma breve retrospectiva permite o reencontro com os momentos atrelados à pandemia que se sucederam desde março de 2020. Sim, eles nos desafiaram, mostraram que era possível mudar e se reinventar. A resiliência se fez essencial e, naquele terreno árido, brotou - talvez como uma defesa para acalentar o sofrimento - a esperança de nos tornarmos no período pós pandêmico pessoas mais solidárias, empáticas e humanas. 

Porém, infelizmente, a esperança supracitada passou a escoar como água entre os dedos desde o dia 24 de fevereiro, quando os conflitos entre Rússia e Ucrânia passaram a dominar os meios de comunicação. 

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Naquela manhã de quinta-feira, a sensação foi a de que os gráficos com número de contaminados ou vacinados haviam subitamente sido substituídos por proclamações de ameaça e retratos de violência. Arrebatados por este triste suspiro, tornou-se quase inevitável um momento de reflexão. Conscientes e incomodados com a dor dessa realidade, emerge hoje em nós, adultos e pais, a questão: como abordar com nossos filhos um tema tão complexo? Diante da dificuldade de alguns pais em responder algumas dúvidas, visto que já são tidas como "cabeludas" perguntas infantis usuais como "de onde eu vim ou como são feitos os bebês, surge, então, algo tão mais complicado.

O fato exposto aqui é que após o esforço imensurável de explicarmos acerca de um vírus invisível, altamente contagioso e ameaçador, nos deparamos agora com a explosão de uma guerra. E, por mais cuidadosos que sejamos, de forma acidental ou não, o contato das nossas crianças com tais notícias tende a ocorrer a qualquer instante. Quem sabe seja por meio do noticiário ligado enquanto ela passava pela sala, do podcast que um colega comentou, da escuta de uma discussão entre adultos ou das trocas numa roda de conversa entre pares. 

E agora, José? O quê, quando e como falar com as nossas crianças? Visto que não existem receitas, seguem algumas considerações.

  • Converse: para começar busque saber o que ela já sabe, pergunte sobre o que já viu, ouviu ou trocou com os colegas, na escola, por exemplo. Esse ponto de partida é capaz de oferecer dicas acerca de quais tipos de informações ela está preparada para receber.
  • Espere o assunto chegar: não pule degraus, não é necessário antecipar o bate-papo, mas é imprescindível estar atento ao comportamento,  dialogar sobre temas do dia a dia e responder sempre que for apresentada qualquer dúvida.
  • Para cada idade uma abordagem: as respostas não precisam ser elaboradas, devem estar ao alcance do que ela é capaz de compreender e não precisam ser dadas de forma imediata. No caso de dúvidas, busque as respostas, assim você se sentirá mais seguro e transmitirá isso à criança.  Aliás, a depender da questão, essa busca pode ser feita inclusive em conjunto. 
    • As crianças menores podem ainda não conseguir expressar  sentimentos e emoções por meio de palavras. Por essa razão, se faz necessário, atentar-se também àquilo que não é dito. Observe se estão presentes sintomas psicossomáticos como queixas frequentes de dores de cabeça ou na barriga, alterações nos padrões de sono e apetite etc. Também observe o que a criança expressa por meio da arte, da escrita ou de outros sinais como ansiedade, maior dependência da figura de um adulto ou alterações abruptas de comportamento. 
    • Além disso, mais especificamente em relação às dúvidas que possam surgir, lembre-se de que quanto mais novas, mais imaturas elas são do ponto de vista do desenvolvimento, para lidar com assuntos tão complexos. Logo,  busque esclarecê-las de forma simples e objetiva. 
    • Já com as crianças com idade mais avançada, esse pode ser um momento que se faz rico com a troca de informações e com a discussão sobre as diferentes visões de mundo. Sim, trata-se de um momento histórico. Vocês podem explorar mapas, elaborar uma linha  do tempo com os principais marcos da história juntos e debater sobre outras guerras que já ocorreram. 
  • Limite a exposição aos fatos, oferecendo coisas de criança, ou seja, brincadeiras, jogos, histórias, contos etc.
    • Vale a ressalva de que explicar o que está acontecendo por meio de uma conversa é completamente diferente de expô-la às angustiantes imagens de uma guerra. Não é necessário e nem adequado esse tipo de atitude, mesmo porque, algumas crianças com até quatro anos de idade, por exemplo, podem nem mesmo conseguir discriminar ainda o que é realidade e o que é fantasia.
    • Utilize os recursos disponíveis: selecione vídeos na internet, filmes, desenhos, charges, livros etc - sempre de acordo com a faixa etária.  Valorize também o brincar, afinal, através do lúdico a criança também se comunica. Que tal tirar os sapatos, acomodar-se no tapete da sala e apenas brincar? Faz de conta, fantoche, jogo de sombras, jogos de tabuleiro, façam escolhas em conjuntos, esteja presente.
  • Promova o acesso a fontes de informações confiáveis:  é preciso o corte das asas de informações falsas que circulam a todo vapor. Esclareça, por exemplo, que este conflito está ocorrendo longe do nosso país, contudo não ignore o sofrimento que ela gera, coloque luz na importância da compaixão e solidariedade. 
  • Respeite, disponibilize tempo e acolha: respeite o espaço da criança e valide suas emoções e sentimentos, como medos e angústias. Escute o que elas têm a dizer até o final, evite interrupções, para isso, reserve um tempo na sua agenda - o tema é complexo e o diálogo deve acontecer sem pressa. Segure o ponteiro do relógio neste instante, mostre que a criança é uma prioridade, não está sozinha e que pode sentir-se segura ao seu lado.

Espero que possamos, ao lado das nossas crianças, aprender com a história, buscar novas rotas, plantar sementes pelo caminho e, assim, resgatar a beleza da humanidade. Após a leitura, pondere acerca das sugestões oferecidas conforme seus princípios, afinal, se cada indivíduo já é único, imagine quão profundas são as particularidades de cada família. 

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Por fim, atrevo-me a dar apenas uma única recomendação a todos que chegaram até o fim desta reflexão: independente da idade, olhe nos olhos do seu filho e abrace-o. Por vezes, são de grande valor os ensejos nos quais dispensamos as palavras, escutamos o silêncio e  acolhemos outrem a partir do entrelaçar dos braços no laço de um abraço. 

Juliana Góis é Orientadora Educacional de Apoio à Aprendizagem no Colégio Rio Branco, psicóloga e psicopedagoga, especialista em Neuropsicologia e mestre em Neurociência. Atua na área clínica e educacional. Foto: Estadão
Opinião por assessoriaimprensa
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