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Cotas raciais para acesso a universidades públicas

Oscar Vilhena, advogado e diretor da Direito-GV, analisa julgamento do STF

Por Oscar Vilhena
Atualização:

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou constitucional um conjunto de programas de ação afirmativa no sistema universitário terá a médio prazo enorme impacto sobre a própria estrutura da sociedade.

 

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A escravidão e a omissão republicana em enfrentar a questão racial criaram fortes e perversas distorções na forma como brancos e negros se beneficiaram do processo de desenvolvimento da sociedade brasileira.

 

Inúmeras são as lições que podemos tirar dessa decisão. Em primeiro lugar é preciso entender que processos de transformações sociais são longos e multifacetados. As medidas aprovadas pelo STF decorrem, primeiro, da ação persistente do movimento negro, que tem raízes no período da abolição. Ela impulsionou universidades, governo e partidos a criarem políticas voltadas à reparação e equiparação dos direitos da comunidade negra – questionadas no Supremo pelo DEM, segundo o qual não existe racismo no Brasil e, portanto, qualquer política baseada em raça promoveria a discriminação e a intolerância.

 

Da perspectiva jurídica também há muito a aprender. O ponto inicial é a releitura do princípio da igualdade e dos diversos objetivos impostos ao Estado e à sociedade pela Constituição. Se no passado muitos deles eram tomados apenas como exaltações retóricas, a presente decisão transformou intenções em leis, com poder de obrigar instituições a cumprirem regras. Se a Constituição determina ao Estado reduzir a pobreza e a exclusão, isso deve ser perseguido por políticas concretas.

 

A segunda questão propriamente jurídica refere-se ao modo como o STF interpretou as diversas dimensões do princípio da igualdade no nosso contexto. Se, por um lado, esse princípio determina que todos merecem ser tratados de maneira imparcial pelo poder público, ficou claro que persistentes padrões de desigualdade racial são razão forte o bastante para criar políticas de equiparação.

 

Ao tratar dos princípios da igualdade formal e material, o relator, Ricardo Lewandowski, argumentou que o tratamento formalmente igualitário pode esconder e acirrar desigualdades preexistentes, daí a importância de o poder público estar atento à realidade na elaboração de políticas. Ou seja, as ações afirmativas foram formuladas a partir do reconhecimento de que a discriminação racial tem forte impacto na distribuição de bens públicos. O ministro Luiz Fux, por exemplo, ratificou que ações afirmativas seriam políticas eficazes de reconhecimento, porque destinadas a fornecer espécies limitadas de tratamento preferencial para pessoas de grupos raciais, étnicos e sociais que tivessem sido vítimas de discriminação de longa data.

 

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O caso das cotas, por fim, ensina muito sobre o funcionamento das nossas instituições. A incorporação das ações afirmativas ao repertório de políticas públicas deu-se paulatinamente. Primeiro temos uma ordem constitucional que estabeleceu a necessidade de políticas redistributivistas. De modo descentralizado, várias instituições deram início a políticas experimentais. O próprio STF usou políticas afirmativas na seleção de funcionários. Esses experimentalismos permitiram a qualificação dessas políticas e a avaliação de resultados. Desde então, o governo federal, via ProUni, criou uma política mais ampla, que já beneficiou quase 1 milhão de jovens.

 

O STF, portanto, usou de uma de suas virtudes passivas. Aguardou o amadurecimento de diversas dessas políticas para analisar sua constitucionalidade. Pôde, assim, fazer um juízo mais substantivo, não pautado por uma percepção abstrata do Direito, mas por suas consequências práticas. Num contexto cosmopolita, em que foram dissecadas as experiências da Índia, Estados Unidos e África do Sul, esse diálogo envolveu a sociedade civil, instituições de ensino, Executivo, Legislativo e o próprio Judiciário, dando às políticas de ação afirmativa enorme legitimidade.

 

É assim que democraticamente as sociedades curam suas feridas e avançam em direção à expansão da autonomia e dignidade de todos os seus membros. Esse será o legado da decisão do STF às gerações futuras.

 

A decisão mostra que um estreitamento do diálogo entre instituições da sociedade civil e o Judiciário pode resultar em decisões benéficas para o desenvolvimento do País. Também mostra que princípios constitucionais não são apenas declaração de intenções nem são imutáveis: devem ser aplicados dentro de uma perspectiva histórica.

 

* OSCAR VILHENA, ADVOGADO E DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA, DIRIGE A DIREITO-GV. COMO DIRETOR JURÍDICO DA CONECTAS DIREITOS HUMANOS, DEFENDEU OS SISTEMAS DE COTAS EM AUDIÊNCIA PÚBLICA EM 2010.

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