Como o temperamento interfere em sua carreira?

Especialista fala da importância do autoconhecimento para tomar as decisões certas na vida profissional

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Por Redação
Atualização:

O que leva um indivíduo a executar bem, durante anos a fio, um trabalho do qual no fundo ele não gosta nem um pouco? Por que uma pessoa se sente confinada e infeliz ao atuar no mundo corporativo enquanto outra faz questão de que tudo ali funcione na mais perfeita ordem e experimenta nisso um sentimento de realização pessoal? Por que um médico prefere dar expediente no consultório e outro no campo, atendendo vítimas de emergências? Na tentativa de entender essas distinções, a jornalista, pedagoga e consultora de carreira Maria de Luz Calegari escreveu há alguns anos o livro Temperamento e Carreira (Summus Editorial), em parceria com o consultor Orlando H. Gemignani. Orientadora vocacional, Maria da Luz  defende, no livro e no trabalho, que o sucesso e a satisfação profissionais estão ligados ao temperamento das pessoas e ao modo como esse temperamento interfere em suas decisões e determina suas ações. “Me interessei em pesquisar e escrever sobre temperamentos, porque descobri que eles determinam nossa forma de ser e de estar no mundo.”

Na prática, fazer um teste vocacional que permita identificar qual dos quatro temperamentos universais (artesão, guardião, idealista e racional) predomina na personalidade da pessoa e encontrar as atividades com as quais se tem mais afinidade, pode ajudar a ser mais feliz no trabalho. Não se trata nesse caso do conceito de temperamento popular, que em geral se refere ao gênio e ao humor, mas sim do temperamento estudado na psicologia. “Nas últimas décadas as teorias do ponto de vista psicológico avançaram bastante em virtude de contribuições da neurociência”, diz.

Maria da Luzdefende, no livro e no trabalho, que o sucesso e a satisfação profissionais estão ligados ao temperamento das pessoas Foto: Divulgação

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Maria da Luz já criou e aplicou inúmeros testes de orientação baseados na teoria dos temperamentos. Segundo ela, um bom ponto de partida é essa avaliação online composta de treze questões bastante simples, e publicada no site do Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee). “Adultos e adolescentes se acham nas respostas.”

Na entrevista a seguir, Maria da Luz descreve os perfis profissionais que costumam ser associados a cada um dos quatro temperamentos universais. Entenda, por exemplo, porque os artesãos são tipos de espírito livre e tendem a sentir-se frustrados em ambientes corporativos.

Como o temperamento ajuda a direcionar a carreira de quem está prestes a escolher uma profissão, ou mesmo um profissional em dúvida diante da própria trajetória?

Acredito que temos um temperamento que é inato e que esse temperamento é determinante para as áreas que seremos vocacionados. Certa vez, dei orientação para uma pessoa cujo teste vocacional apontou para ela como carreira principal relações públicas. Ela preferia ser atriz. Expliquei que não havia conflito, porque os talentos e inteligências requeridos para as duas profissões são praticamente os mesmos. Sendo atriz, porém, ela não teria a segurança e a estabilidade da carreira de relações públicas numa grande empresa. Férias, décimo terceiro, plano de saúde, vale-refeição. O que você valoriza mais, perguntei. Estabilidade, segurança? Novidade, surpresa, imprevistos? Há pessoas que gostam de viver, digamos, de uma forma não tão estável, porque a estabilidade requer que se adaptem a regras e regulamentos e elas gostam de ter agenda livre e administrar o próprio tempo. Elas não são feitas para trabalhar no mundo corporativo, regrado e estruturado. Ou seja, a vocação é um chamamento interior. Em primeiro lugar, a pessoa tem de se perguntar em que carreira será feliz, trabalhará empolgada e entusiasmada e não só na expectativa de um contracheque. Se o indivíduo está mais propício à estabilidade material, as carreiras mais soltas, ligadas à arte, talvez não sejam para ele. Por isso é importante conhecer o temperamento, as características de personalidade e os interesses que falam mais alto.

Quais são os chamados quatro temperamentos universais de que trata seu livro?

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São quatro temperamentos, quatro grupos:

1) O primeiro é o temperamento artesão, que no teste do site do Ciee está identificado como hedonista, mas acredito que artesão é um termo mais apropriado. Mais de 40% dos brasileiros estão nesse grupo. Os artesãos são pessoas de ofício, técnicas e empreendedoras, principalmente em áreas concretas e relacionadas com tato, olfato, paladar, audição, prazer e lazer, a exemplo de comida, bebida e perfumes. São pessoas eminentemente sensoriais. A maior parte dos cantores e músicos faz parte desse grupo. É até um pecado esse grupo ir para a faculdade e ter de engolir tanta teoria. Pouca teoria para eles já resolve, porque são pessoas de ofício, artes plásticas, dramáticas, visuais. Os artesãos têm muito traquejo para falar, convencer e negociar. A inteligência linguística deles é notável. Eles gostam de holofotes, palcos, são artistas e gostam de se reinventar. Estão sempre se recriando. Há muitos médicos entre os artesãos. Médicos que querem agir de imediato, como os socorristas, e os ligados à questão da estética, como cirurgiões plásticos. Eles gostam de agir imediatamente. Eles não seriam, por exemplo, médicos de consultório. 2) O segundo é o temperamento guardião, um grupo que valoriza muito status social, posses materiais, cargos e comando. São administradores e gestores por excelência, os favoritos do mundo corporativo e correspondem a mais ou menos 35% da população. Mas em qualquer empresa se aplicarmos o teste pelo menos 60% dos cargos executivos são preenchidos por eles. São responsáveis, trabalham muito, levantam cedo, sempre obedecem aos regulamentos, normas e missão da empresa. São extremamente comprometidos. São bons administradores, mas também podem ser bons em algumas áreas da engenharia, do direito e do ensino, principalmente o ensino técnico. São essencialmente administradores. Eles tomam conta do departamento de engenharia, financeiro, jurídico. Têm vocação para o comando. Aqui encontram-se também os profissionais voltados para a saúde do corpo, de populações ou individualmente. Há muitos médicos de consultório e de saúde pública entre os guardiões, a exemplo de infectologistas e que atuam na área de vacinas. 3) O terceiro grupo é o idealista, comprador de causas. É o que mais se preocupa com o bem-estar e o desenvolvimento das pessoas e os problemas de saúde mental e psicológica. Terapeutas ortodoxos ou alternativos, eles querem curar as pessoas de seus problemas e dilemas. Os idealistas são bons orientadores vocacionais e educacionais. São ótimos pedagogos, antropólogos, sociólogos. Estão focados nas necessidades, na promoção e no desenvolvimento do ser humano. Há entre os idealistas grandes escritores, não só da língua portuguesa, mas ingleses, franceses, russos... Eles são intuitivos e sentimentais. Sua inteligência emocional é muito desenvolvida, então conseguem captar e intuir sentimentos. Por isso são tão bons principalmente para escrever romance e poesia. Os idealistas saem pelo mundo buscando causas para defender, sejam elas políticas, sejam de direitos humanos. Enquanto a Cruz Vermelha é uma instituição guardiã, porque se preocupa com a saúde do corpo e está presente nas guerras e conflagrações mundiais, o idealista está na ONU, que quer evitar o conflito ou defender a independência de um país. Você tem nesse grupo Malala, que quer que as meninas tenham direito à educação, Nelson Mandela e Martin Luther King e vários advogados de causa humanitária. É um grupo pequeno, 15% da população. 4) Racionais. Esse é o grupo mais raro. É o pensador intuitivo. É o pessoal que vai para ciência, pesquisa científica, grandes laboratórios farmacêuticos, física, química e matemática. Ou então são grandes estrategistas militares, CEOs de empresas. Normalmente eles estão nos conselhos de administração. Conseguem projetar o futuro, percebem quanto têm de fazer alterações em projetos da empresa, antecipam o momento em que um produto se tornará obsoleto, o que fazer para renová-lo, ou que produtos o mercado vai precisar e pode lançar para nos adiantar frente à concorrência. São estrategistas de negócios e também os homens de ciência. Todas as áreas de engenharia, TI, todas as ciências têm pesquisadores racionais. É o menor grupo da população. Fiz uma pesquisa representativa com 0,5% da população do município de Paulínia, em São Paulo. Era uma amostra bastante estratificada. Homens e mulheres de 17 a 78 anos. Havia desde diretores de grandes empresas, do polo petroquímico da região, e doutores de universidades, até analfabetos. Faxineiros, cozinheiros etc. também participaram. Achei, ali, 40% de artesãos, 39% de guardiães, 15% de idealistas e 6% de racionais. Isso não é de estranhar. Nos Estados Unidos e na Europa, os racionais nunca chegam a 10%.

O que acontece quando um teste ou nossa investigação pessoal nos coloca em mais de um desses grupos de temperamentos?

Depois de identificar os temperamentos, a pessoa tem de sair a campo para descobrir. Tem de se perguntar do que eu gosto? O que eu vou precisar ter para seguir essa profissão? Precisa conversar com profissionais da área e procurar saber, na escola que pretende frequentar, qual é o currículo do curso e ver se gosta e tem condição de segui-lo. Vai peneirando até chegar em duas ou três profissões e escolher.

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Essa investigação de temperamentos é recomendada para quem está se preparando para a faculdade, mas também para quem está insatisfeito com a atual profissão?

Sim. Já encontrei um estudante de engenharia, por exemplo, que usava raciocínio lógico muito bem e era bom com números. Foi fazer engenharia, porque o pai era engenheiro e queria agradar a família, mas quando chegou na faculdade ficou abobado quando viu o currículo e a carga horária da disciplina e tudo o que ele não sabia. Esse rapaz, para o qual dei orientação vocacional, era bom com números, mas não gostava de matemática. Quando apresentei as alternativas que ele tinha, ele vibrou com a área de comunicação, especificamente a comunicação radiofônica. Radialista. Ele era um artesão, tinha o perfil de comunicador. A engenharia exige não só que você seja bom com números. Entre as inteligências que ela requer, está a espacial, que nem todas as pessoas têm. Às vezes, uma inteligência pode levar à falsa conclusão de que a pessoa é vocacionada para uma determinada área.

Em uma mesma carreira há profissionais de diferentes temperamentos?

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Sim. O fato de uma pessoa escrever bem, por exemplo, não quer dizer que ela deva ir para o jornalismo. O jornalismo exige outras características, além de escrever bem. Fico imaginando o repórter de televisão, que é chamado para falar ao vivo. Ele tem de ter uma inteligência linguística notável, mas também um jogo de cintura muito grande. Uma pessoa idealista pode ser jornalista, sim. Eu sou idealista e a maior parte do tempo fui jornalista, só que de revistas especializadas com foco educacional, que sempre me interessou. Meu interesse era levar conhecimento de ponta para essas pessoas e eu tinha um mês para fazer a revista. Não tinha essa pressão do jornalismo cotidiano. De repente, se a inteligência maior for a inteligência linguística, a pessoa pode ser escritora. Pode reparar que grandes escritores foram também jornalistas. O artesão se dá muito bem no jornalismo diário. No jornalismo de aprofundamento, você pode ter qualquer um dos três temperamentos, o guardião, o idealista ou o racional. O racional pode escrever sobre tecnologia da informação, um idealista pode comentar a guerra de um ponto de vista humanista, de defesa dos direitos humanos. Um racional vai analisar a economia ou a crise hídrica no sentido macro, num âmbito maior. Um guardião vai analisar a economia ou a crise hídrica atual de um ponto de vista concreto, como a falta de água afeta a vida nos hospitais? É concreto e factual. O racional é pensador intuitivo. O guardião é um pensador sensorial, sempre focado no concreto, no que está à vista, ele não formula hipóteses, ele não vai para a teoria, ele está sempre preso no que é mensurável, quantificável. Mas aí já estou entrando muito da questão teórica.

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