Coisas que eu queria saber aos 21: Sidarta Ribeiro

Neurocientista fala sobre a escolha da carreira e a militância política

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Por Redação
Atualização:

“Aos 21 quis ver quem eu era fora do contexto familiar, dos amigos e do partido político. Cursava Biologia na UnB e trabalhava num laboratório de microbiologia estudando bactérias e protozoários. Meus orientadores achavam que eu tinha de fazer doutorado na Inglaterra. Eu adorava ciência e estar no laboratório, mas não estava apaixonado por meu objeto de pesquisa. Tive uma crise vocacional. Tranquei o semestre e fui viajar pela América Latina, com a mochila nas costas, US$ 1,5 mil no bolso e o pensamento de que minha pátria eram meus sapatos.

 

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Sempre fui comportado, então aquilo foi uma novidade para mim. Eu ficava vagando na estrada esperando uma carona para me levar ao próximo destino. No Chile, fui até a Ilha de Chiloé, onde me hospedei numa casa de amigos de amigos de amigos, militantes de esquerda, autoexilados de Santiago por causa do Pinochet. Esse pessoal fazia um trabalho incrível com os índios da ilha, que ia de advocacia a arqueologia. Foi lá em Chiloé que li A Árvore do Conhecimento, de Humberto Maturana e Francisco Varela, neurobiólogos chilenos cujos experimentos e ideias fizeram minha cabeça. Tive um estalo e, naquele momento, chegou a clareza de que eu queria ser neurobiólogo.

 

Voltei a Santiago e procurei o Maturana. Encontrei-o na Universidade do Chile e falei: ‘Quero fazer pós-graduação com o senhor, mas tem um problema: do cérebro só sei que tem dois hemisférios’. Ele foi muito simpático. Trocamos contatos e voltei ao Brasil decidido a mudar de vida. Só que a ânsia de viajar não tinha passado ainda. Fui até onde Che Guevara foi assassinado na Bolívia, conheci as minas de Potosí e os mineiros de Oruro, visitei um amigo em Quito, rumei para Cartagena, no Caribe colombiano, e desejei ir até o México, mas aí o dinheiro acabou e tive que voltar. Peguei um barco em Tabatinga e desci o Rio Amazonas.

 

Mudança

 

Cheguei magérrimo e com uma barba imensa. Procurei meus orientadores Isaac Roitman e Loreny Giugliano e falei que não queria mais estudar microbiologia. O Isaac passou três dias brigando comigo, dizendo que aquilo era um absurdo, mas depois me ajudou a encontrar outro laboratório na UnB. Ele continua até hoje meu mentor para assuntos de ciência e da vida.

 

Tinha a sensação de estar largando minha carreira, porque havia passado um terço da vida estudando bactérias e protozoários. Comecei no laboratório aos 15, por um truque de minha mãe. Meu sonho quando adolescente era mergulhar, conhecer o Jacques Cousteau e trabalhar no Calypso. Queria ir para o Rio fazer faculdade. Minha mãe me convenceu a fazer um estágio em Biologia na UnB dizendo que, se eu gostasse, poderia depois cursar Biologia Marinha fora de Brasília. Ela me apresentou ao professor Isaac, que era amigo dela. Conversamos algumas vezes e ele me convidou para trabalhar voluntariamente no laboratório. Gostava muito de colocar o jaleco e ir para a UnB todo dia, numa iniciação científica júnior.

 

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Mas percebi que precisava gostar daquilo para além do orgulho de ter trabalhos publicados. Atravessei o corredor e fui bater na porta do laboratório de neurobiologia, onde encontrei Marco Marcondes de Moura. Lá eu não entendia nada, mas me interessava por tudo. O Marco é um professor muito carismático e resolveu me ajudar. Logo tornou-se, ao lado do Isaac, meu outro mentor.

 

Militância

 

Antes da viagem eu também militava no PT. Cheguei a trabalhar em eleição como fiscal de boca de urna. Me envolvi de corpo e alma no movimento para derrubar o Collor. Aliás, considero que fomos nós, alunos da UnB, que começamos a derrubá-lo. Toda sexta-feira o presidente promovia um show midiático para descer a rampa do Palácio do Planalto. Resolvemos protestar usando becas e balões negros, para fazer barulho durante seus discursos. Na primeira vez que organizamos esse protesto, o Collor saiu enfurecido, entrou no carro e queria ir embora queimando pneus. Mas conseguimos furar o cordão de isolamento da polícia. Foi quando o presidente nos mostrou o dedo médio e saiu na capa dos jornais, pela primeira vez, com uma imagem negativa. Repetimos o ato outras três vezes, até que o Collor desistiu para sempre da ‘descida da rampa’. Pintamos a cara num torneio de tênis chamado Aberto da República, justo em frente ao Congresso. Um ano depois, os caras-pintadas tomaram as ruas do País.

 

O impeachment teve gosto de vitória para minha geração. Quando Collor caiu a gente pensou: ‘O futuro é nosso!’ E tudo isso ao som de Legião Urbana e Paralamas do Sucesso, bandas que faziam do rock em Brasília uma atitude de contestação e de defesa da redemocratização.

 

Me formei e finalmente fui para o Rio, onde fiz o mestrado sob orientação de Ricardo Gattass, na UFRJ. Quando fui aceito pela Universidade Rockefeller para fazer o doutorado em Nova York, quase desisti. Sabia que o ambiente das ciências nos EUA e na Europa era muito mais estruturado, mas tinha uma visão anti-imperialista. O Marco me chamou para uma conversa muito séria no Bar Amarelinho, no centro do Rio. Ele me disse: ‘Você tem que ir. Esta é uma obrigação sua com seu país. Vá e volte. Encare como uma missão’.

 

Instituto

 

Embarquei. O doutorado foi uma experiência transformadora, porque ali eu percebi que começava a produzir ciência por conta própria, no que veio a ser minha linha de pesquisa principal: sono e formação da memória. Quando já colhia os frutos de meus trabalhos resolvi ter tempo para outras coisas. Fui aprender capoeira com o mestre Caxias, do Grupo Capoeira Brasil. Pensava que estava velho demais, mas consegui. Capoeira e ciência têm os mesmos pilares: alegria e disciplina.

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Já no primeiro ano do doutorado, em 1995, conversava com o Claudio Mello, meu orientador, sobre criar um instituto de neurociências no Brasil. Durante a pesquisa li alguns trabalhos do Miguel Nicolelis e, em 1998, o convidamos para dar uma palestra na Rockfeller. Aproveitamos para falar com ele sobre o projeto. Àquela altura já tínhamos uma rede formada por cientistas e não cientistas, na Europa, nos EUA e no Brasil, discutindo a ideia. Miguel disse que não voltaria ao Brasil, mas nos ajudaria. Passei a defender que ele fosse o líder do projeto, posição que ele efetivamente assumiu a partir de 2003, quando eu já estava trabalhando com ele na Universidade Duke, na Carolina do Norte, fazendo pós-doutorado.

 

Voltar ao Brasil depois de onze anos nos EUA – estava saturado do governo Bush – foi uma coisa brancaleônica. Em 2005 me mudei para Natal (RN), onde instalamos o Instituto Internacional de Neurociências. Fiquei um ano sem equipamento algum, mas acreditava que aquilo ia dar certo. Corri o sério risco de perder o ritmo da minha produção científica.

 

Agora trabalho em outro instituto, exclusivamente da UFRN, o Instituto do Cérebro. Como resultado desses vários anos de projeto, conseguimos repatriar e fixar em Natal dez jovens e utópicos neurocientistas de nível internacional. Entre eles o professor Sergio Neuenschwander, que participou do planejamento inicial do instituto, em 1995, e chegou ao RN há 6 meses, depois de ter passado 26 anos na Europa, no Instituto Max Planck. Ele é o nosso vice-diretor. Sergio e a esposa, a alemã Kerstin Schmidt – também professora titular do nosso grupo – trouxeram seus laboratórios completos através de um convênio.

 

Aos 21 descobri as perguntas que eu queria responder: o que são consciência, sonho e pensamento? De lá para cá, construí algumas respostas para essas dúvidas. Se puder deixar um conselho para os jovens, aqui vai: forme-se da melhor maneira possível. Antes de pensar em ganhar dinheiro e se preocupar com a aposentadoria, agregue valor à sua mente. E corra riscos em nome do que você gosta. Mesmo que isso signifique viver de maneira modesta por algum tempo. Felicidade deve ser sua bússola.”

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