Coisas que eu queria saber aos 21: Nei Lopes

Sambista, escritor e advogado de 69 anos fala sobre sua formação

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Por Redação
Atualização:

"Sou o 13.º filho de uma família mulata, operária e suburbana constituída em 1916 pelo casamento de meus pais, ele com 26 anos de idade, ela 12 anos mais nova. Na condição de filho caçula e temporão, nascido 26 anos após esse casamento, tive alguns privilégios. O maior deles foi ter sido o primeiro a completar o antigo ginásio e a chegar à universidade.

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Aos 21 anos eu cursava o bacharelado em Direito e Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil, no Rio, onde ingressara, bem colocado, no vestibular de 1962. Era o segundo ano do curso, mas eu já começava a me desinteressar das aulas, tão envolvido que já estava nas atividades do centro acadêmico, o célebre Caco, desenhando charges e escrevendo poemas para o jornal mural, pintando cartazes e faixas para as passeatas, participando como ator e autor do grupo teatral orientado pelo CPC da UNE.

 

Para sobreviver, acabei conseguindo meu primeiro emprego formal, no Departamento Jurídico de uma grande indústria de sabões e óleos. Minha função era ler o Diário Oficial, na seção de Propriedade Industrial, de olho em pedidos de registros de marcas que, de qualquer forma, coincidissem com as do patrão (‘criatividade’ pura!).

 

Um dos motivos da minha opção pelo Direito veio de uma fantasia de infância. Bem criança, eu gostava muito de brincar com papéis e documentos velhos. Por isso, meu pai dizia que eu parecia o Doutor Jacarandá, um negro velho, rábula do Fórum carioca, figura folclórica. Eu gostava da comparação; e talvez tenha sido isso, além de minha dificuldade com a matemática, que me encaminhou: no início, uma fantasia, como a do samba.

 

Família. Meus pais - coitados! - sabiam apenas ler, escrever um pouquinho e contar. Eram dotados de muito senso prático (que minha mãe aliava à sensibilidade musical), mas não puderam ter nenhuma influência sobre meus estudos, experiência inédita para eles. Desde cedo eu os iludi: de início, quando passei em primeiro lugar no concurso para o ginásio, entregando-me depois a uma vida estudantil relaxada (eu só mostrava em casa as notas boas, geralmente em português, inglês e francês), causadora de uma grande decepção familiar quando fui reprovado no último ano. Depois, na faculdade, a família só queria mesmo era me ver formado, o que felizmente ocorreu em 1966.

 

Nessa altura eu já estava no mundo do samba. No carnaval de 1952, eu com 9 para 10 anos, assisti, no meu Irajá, subúrbio carioca, a um desfile da Portela (sei o ano certinho por causa do samba enredo). Fiquei muito impressionado ao ver meninos com seus pais, participando, vestidos ‘de homem’ (terno, gravata e chapéu) e levando bengalinhas. Fiquei fascinado e sonhei aquilo pra mim. Tanto que, no final do ano, finquei pé em casa e “saí” daquele jeito, na minha Primeira Comunhão (tenho foto). Sem a bengalinha, mas com uma vela decorada na mão. E isto para o aplauso de uma ‘tia’ de minha família extensa, compositora da Portela, que me incentivava, contra a vontade dos meus pais.

 

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Na minha casa, cheia de músicos amadores, cantava-se samba, tocava-se violão, cavaquinho, pandeiro, cuíca etc. Mas escola de samba era arte estigmatizada como marginal, do gueto: nós éramos pobres, mas ‘de família’.

 

Salgueiro. Por ironia do destino, em 1953, ingressando na Escola Técnica Visconde de Mauá, me aproximei de colegas de comunidades do samba, principalmente de um cuja família era do Morro do Salgueiro. Aprendi tudo de samba. Mas só em 1963, já com 20 anos de idade e na Faculdade de Direito, realizei meu sonho. Saí nos Acadêmicos do Salgueiro e fui campeão no primeiro campeonato da escola: o legendário desfile da Chica da Silva. Dez anos depois, eu me tornava compositor. Principalmente de sambas. Assumi a condição de profissional da música depois de exercer a advocacia por curto período.

 

Mas o que agora não saía da minha cabeça era a questão da exclusão do povo afrodescendente, da qual eu, filho de um mulato nascido em fevereiro de 1888, não podia fugir. Foi então que, mesmo de maneira desorganizada, comecei a ler, e muito, sobre os fundamentos dessa questão, na qual o samba se incluía e inclui ainda.

 

Ensaio. No fim da década de 70, participando de um grupo doméstico de estudos reunido em torno do sociólogo e escritor Muniz Sodré (que incluía o legendário sacerdote baiano Mestre Didi e sua mulher, a antropóloga Juana Elbein dos Santos), fui convidado a escrever um pequeno ensaio, crítico e reflexivo, sobre a questão do samba e das escolas naquele momento de grandes transformações. Esse ensaio resultou em meu primeiro livro publicado, O Samba, na Realidade... (de 1981).

 

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Não parei mais. Na década de 1960 já tinha poemas em publicações de esquerda, como a célebre Revista Civilização Brasileira. Mas a carreira literária, que hoje inclui ensaios, romances, contos, poemas e dicionários, começou aí. A base de tudo foi sempre muita leitura e observação. No caso do Dicionário Banto do Brasil, que integra, para meu orgulho, a bibliografia técnica do Dicionário Houaiss, lançado em 2001, contei com uma pequena ajuda da Uerj, além de ter participado de um seminário especifico na Unicamp.

 

Minha trajetória - na qual este ano perfaço 40 anos de música e 30 de criação literária - não é nada linear. Ela comporta uma dose muito grande de intuição, o que credito à minha orientação filosófica, adepto que sou de uma importante modalidade religiosa de base africana. Persistência e tenacidade também são importantes.

 

E acho que isso é o fundamental, aos 21 anos de idade: mirar um objetivo e persegui-lo. Mesmo que seja pulando do Direito para o samba e do samba para a literatura. Pois vai haver um momento, como este que vivo hoje, às vésperas dos 70 anos, em que tudo isso vai se encontrar."

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