Coisas que eu queria saber aos 21: Herch Moysés Nussenzveig

Físico e professor da UFRJ fala de sua formação

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Por Redação
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Sempre fui viciado em leitura: dois conselhos que dou para escolha de carreira (e para a vida toda) têm origem literária. O primeiro é do Gargantua de Rabelais, o dístico da sua utópica Abadia de Thélème: “Faça aquilo de que gostar.” O segundo é do Hamlet, dado por Polonius a Laertes: “Isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo.” Segui ambos para minha escolha, aos 17 anos. Ganhei, num concurso de redação sobre o legado cultural da França, uma bolsa do governo francês para cursar um ano de qualquer faculdade. Uma das minhas paixões era a matemática; outra, o cinema. Optei pela primeira, e cursei Mathématiques Générales na Sorbonne, excelente formação básica. Em Paris, pude usufruir, mesmo com a bolsa modesta, de ótimos concertos, teatro e cinema. De regresso a São Paulo, meu diploma francês foi reconhecido e ingressei na USP sem vestibular, no segundo ano de Física. No ano seguinte, veio para a USP, como refugiado do macartismo, o notável físico teórico David Bohm, com quem cursei física teórica e mecânica quântica. Logo após meu bacharelado, Bohm emigrou para Israel, mas foi substituído por outro ilustre estrangeiro, Guido Beck, refugiado do nazismo. Beck adotou-me como discípulo e orientou meu doutorado em Física Teórica, defendido na USP mas realizado em parte já no Rio – onde ele pertencia ao CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas). Beck foi como um pai espiritual para mim. Como bolsista do CNPq, fiz na Europa dois anos de pós-doutorado, com estadias muito proveitosas em três excelentes centros de física teórica em Utrecht, Birmingham e Zurique. Regressando ao Brasil, fui promovido a professor titular do CBPF, mas a situação financeira do centro, que na época era instituição privada, tornou insustentável lá permanecer. Recém-casado e com uma filha de poucos meses, aceitei um convite de professor visitante na Universidade de Nova York. O golpe militar inviabilizou o regresso ao Brasil. Após um ano em Princeton, sem perspectivas de fim da ditadura, prossegui a carreira como professor da Universidade de Rochester, onde permaneci mais dez anos. Denunciei, em artigo para a revista Science, as arbitrariedades dos militares contra os cientistas, que acabaram aposentando compulsoriamente 68 dos nossos mais ilustres professores. Em 1975, com o início da redemocratização, voltei com a família ao Brasil.

Na USP, fundei o Departamento de Física Matemática. Fui nomeado diretor do Instituto de Física contra minha vontade, porque não pude me dedicar como desejava ao departamento nem continuar dando aulas na graduação. Para compensar, dei início à redação de meus livros de física básica, publicados inicialmente em versão manuscrita, por falta de tempo para revisão de provas. No último ano de meu mandato, tomei conhecimento, por acaso, da conclusão inapelável do processo, iniciado por dois ex-ministros da Justiça da ditadura, que criou a casta dos “marajás da USP”. Eles aproveitaram um lapso da lei de 1963 que criou o regime de dedicação integral para restabelecer, quase 20 anos depois, um adicional aos que haviam ministrado um curso noturno naquela época. Os efeitos em cascata pervertiam todo o sistema de reconhecimento do mérito acadêmico, chegando a igualar salários de auxiliares de ensino e professores titulares. Impossibilitado de manifestar de outra forma minha inconformidade, eu me demiti da USP e me transferi para a PUC-Rio. Participando de uma comissão da Academia Brasileira de Ciências e da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), conseguimos restabelecer o Conselho Deliberativo do CNPq e a participação de cientistas nas decisões, cerceada nos anos de chumbo. Depois de mais uma década na PUC, ingressei na UFRJ, onde, há 15 anos e já com 65 (bem depois dos 21!), acabei fazendo mais uma escolha de carreira, novamente baseada nos preceitos mencionados no parágrafo inicial. Criei e coordeno um laboratório de biologia e biofísica celular. Nunca me arrependi das minhas decisões. Tive a sorte de sempre ter trabalhado – e continuar trabalhando – em temas que acho bonitos e fascinantes. Entre eles, a explicação completa de dois dos fenômenos visualmente mais belos da natureza, o arco-íris e a auréola, uma coroa de anéis coloridos em torno da sombra de um avião projetada nas nuvens. Vale a pena procurar vê-la!”

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